sábado, 22 de dezembro de 2007

Noite

Noite lembra aquelas distopias fantasmagóricas, de sair nas ruas sem luz e tremer no escuro, ser abordado por vários duendes de sorrisos estáticos, perigosos como estranhos, lembra aquelas mulheres em êxtase agitando os longos cabelos num frenesi sem mente, animalização humanamente exclusiva, corpo experimentando espasmos sem nexo que se combinam em danças ao redor do fogo, lembra velas acesas só para dar medo dos mais distantes, velas que acendem uma bolha de falsa segurança, frágil, tremendo ao vento que murmura, que grita, lá distante, sem saber quem, e esbarra nos ouvidos desatentos fazendo as cabeças girarem aflitas, lembra às vezes as nuvens cinzentas de chuva, ou pelo menos a cidade que desponta de um universo de tempestade, construção fria, morta, repleta de semi-conscientes perambulando, suspiros e relances de olhos, movimentos nas bordas do campo de visão, o invisível, noite fecha os olhos ferindo com garras de aço só para chorar querendo abrir, espernear na cama insone, desesperado, afogando nos lençóis de pano, querer abrir a janela e pular, virar folha seca redemoinhando sem mente, vontade de esconder atrás das roupas, dos óculos, das vozes, dos sorrisos, se esconder dos assassinos, dos vampiros, dos animais, dos estranhos, dos que são tantos, de olhos abertos, os que vêem e não se vê: porque acender uma vela não ilumina nada, é como gritar sozinho na noite, ninguém socorre, e é pior, porque aí vira vítima, vira presa, os outros que não se ouve encontram, não se está mais escondido, é estar nu de novo: à noite se sai enrolado em pano para não ser pego pela brisa fria, enrolado em pano para tapar bem os ouvidos, e sai para andar no escuro, nos becos, rodando os cabelos como moinho de folhas, espreitando,
tão chorando como os pelados,
tão sozinho como os pelados,
e que vai lá e salta num súbito,
salta das trevas, em espasmo,
rasga todas as vestes vizinhas,
grita e mata
morde e mata
gritando e sorrindo
bebendo sangue e sorrindo
fumando e sorrindo
sorrindo estático
sorrindo duende
sorrindo vampiro.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Agoralidade

Epígrafe do nosso tempo: ...e eles achavam que a vida estava morta!

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

ViajarajaiV

Viajar.
Viajar contém em si um perfume já sorrindo, abre os cabelos em leque ao vento novo - vento frio e azul de nascer-sol. Quando se viaja tudo é-se semente e também partilha em magia: desrevela-se em espasmos a rejuvenescer, gritos, revitória ao sempre. Ah, como é bom viajar!
Viajar devia ser palíndromo: viajar é ida volta. Que na ida somos um e na volta dessomos de novo, desesquecemos caminhando pulos aos sabores da infância deixada atrás. Viajar é ir não voltar mais, e voltar. Glória efêmera em desconhecido, infinita em noite, engolindo e bordando todas as outras! Felizes os pássaros que viajam o ano longe, queria eu ser também músico e vaguear no porvir! Ou queria eu música - descrevo:
Na ida erupção, arranca sentidos e transborda: se em nuvem ou tempestade, paira indecisa. Rio-me só de lembrar: matar-se em prazer sem horizonte, levitar em planos possíveis, prováveis. Que gosto não teria viajar às estrelas?
Enquanto a volta é sua gêmea, rouba-lhe gratidão e fica-se em desgaste - que cansa fugir! O relógio persegue de vassoura na mão, arrebatar encantos da eternidade. A volta é milagre sobre-viver, tragédia da superioridade aos que não foram. A chegada é desfim, o repouso outra aventura.
E antes de viajar, há dobrar a perfeição: plantar mapas na cidade alheia e desdobrá-los, emendar sonhos nas florestas, colorir as pedras de lembrança. Tão espelho ela seria que ao inverso seria-se sem dívidas, enorme vulcão de cor! Pois quem já não sabia muito mais querida a idéia que o ser, e imaginar é cantar destinos. Talvez tropeços em lampejos da realidade na jornada escura, mas, cego ao branco-preto, só se vê o mundo em cheiros de capim nascendo.
Eis aí ao que só resta fim: rir e voar! Para casa, para inverno, calor só aquece em pequenos goles. Quando será a próxima? Não sabe. Mas já se descortina-a ali atrás do palco, desde então recitando a si mesma os futuros versos prediletos, minhas canções favoritas!

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

I (rascunho)

Cena I:

Digladiando as setas do relógio, fazia uma finta, ou cruzava-me os braços, esperava, atacava e esquivava. Mas perdia terreno, e corria - o relógio não conseguia ignorar: ou lutava sem esperanças, ou morria. E ele chovia em mim, e me estava encharcando; a água percorria até as veias azulando o dia, esvaindo como fios destrançados. Cada gota roçando meus cabelos soava um segundo a secar na clepsidra, deusa-mãe da pressa reinante. Os pés não se viam lado a lado há tempos: seu amor platônico ignorado enquanto cumpriam o papel sagrado de esticar e dobrar espaço e tempo - quando de repente gritaram em protesto: abraçaram-se na virada da esquina, derrubando-me, golpe de estado, atiraram-me de cabeça nos mares da derrota, enormes poças d'água de tempo perdido. Quase afoguei, levantei aborrecido, praguejei.
Aí sofro um convite.

Cruzo a rua tranqüila, cantarolando comigo mesma canção nenhuma, simples acompanhamento do tamborilar das gotas nas asas do guarda-chuva, a percussão imprevisível. Música de dia carregado, é música de quem guarda o sol escondido atrás da boca, ali debaixo da língua; ou de quem quase ouve seu sono em leito de nuvens, os roncos de trovões. De quando em quando balanço-me toda e deixo a água acordar rumorejando. Molhar um pouco assusta e faz viver; saio correndo então, leve feito sabonete escorregando pelas ruas lamacentas, soando forte em ambiente, dividindo o mundo em dois; até que ouço um Outro, um murmurante à quase inaudível por trás de sua capa de mau tempo, soçobrar numa virada de esquina, indo-se mergulhar na minha frente. Levanta-se, praguejando confuso, espalhando sons diversos em tons diversos em direções diversas, e no que sou invadida por intenso universo de distúrbio e explosão, e no que os segundos demoram-se a martelar nas nossas cabeças,
"Posso ir contigo?"

Do alto da janela miro a rua, a chuva fina incessante lavando ar como pára-brisa. Desenho solto e leve, sem pensar, cabeceando sono, dormito. Acordo em que um Outro desabando em poça d'água, quadro berrante de outro matiz, líquido disparando por todos os lados, um meteoro a espatifar oceanos. Suas roupas todas transfiguram-se de cor em tantos tons que ao levantar-se ele é puro arco-íris metamorfoseante. Seus olhos faíscam, seu peito queima, posso até ver-lhe as pragas que imagina a saltar pela boca. E nisso soma-se à cena a mais óbvia e inesperada figura, trajando longas capas amarelas de chuva, coroada dum enorme guarda-chuva negro, pilar de escuridão e calma, que irrompe no multicor descaso alheio para ocasionar o fim da tempestade.


Cena II:

Na praia, me aproximo devagar, pisando com cuidado as tantas dunas de areia branca-amarela-marrom, multifacetada em tons escuros claros, sombreadas aqui e ali de imprevisível, iluminação difusa do dia azul-cinza, dia de céu uniforme estático, céu plano-de-fundo, teto liso. E sigo esmagando as esculturas mais insensatas e criando escombros de todos os tamanhos, rodeio o horizonte com os olhos vastamente apertados, pausando eras a cada obstáculo da paisagem, avaliá-lo, criticá-lo, imaginá-lo em tantas diferentes posições, guardá-lo, tão familiar mas irreconhecível, até que capturo ao canto dos olhos um aceno, uma expressão, um rubor percorrendo as faces: ela, trajando tantas cores que já nem nomeio, sorrindo alva iluminando o ambiente. [tudo não seria cinza até ela surgir? pelo menos um pouco.. reescrever] Estaco, e, perdido no jogo de luzes, tateio uma página coberta de idéias e reflexos, e ponho-me a duelar com as cores [?] desembainhando canetas e lápis [ele deveria era fazer um aquarela], colorindo e esboçando sonhos, mundos.
Desenho.

As longas ondas estouram placidamente, longa e calmamente - infinitos continentes aportando e despedaçando, indo-se em vão, encabeçados de bolhinhas a estourar agudas, a arrastar areia em todas as direções, desviando dos banhistas, ondulando ao vento. [] E os passos, tantos, esmigalhando o solo de silêncio pé ante pé, envoltos num murmurar incessante de vento nas orelhas, um suspiro interminável, carregando em si tantos outros, ensurdecendo-me a muitos amigos, atrapalhando diálogos a vozes variadas, torcendo temas, universos encantados que se diziam ali para mim, o resmungar longínquo de companheiros atravessado pelo rima-rima do coração e do sangue pulsando, do marulhar da respiração. E um novo som desperta-me do transe, e percebo num espirrar tão característico meu acompanhante, viro-me ao seu encontro e grito-lhe. Ele ouve, e responde grato, sai-me a correr na minha direção.
Sorrio.

Mormaço, dia nublado, domingo, saía apressado pela areia ardendo quente nos pés, percorria a multidão, ensurdecido e confuso, cego pela massa e pela luz, fotofóbico, cruzava em passos rápidos já suando, recusando os ambulantes, desviando de tantos inúmeros passantes que mal notava, só o suficiente para classificar e esquecer, no meu mundo preto-e-branco de sombras feias e ruídos sem nexo, de claustrofobia, de tédio e irritação, me balançava aflito varrendo a paisagem sem dar atenção aos detalhes, só para somá-la à conta interminável de segundos perdidos. Fui até a beira-mar esfriar os pés, fui pego num estoirar de vaga e, assim, finalmente recordei doutro dia, doutra água, e me inflei de energia como pipa e saí carregado ao vento sem rumos, até de súbito notá-la a presença melodiosa e colorida, perfumada e única; esqueci pressas e calores, beijei-lhe nas sombras do guarda-sol, ou só imaginei, ou só desejei, mas ela me puxa a mão sorrindo sempre e cantarolando.
E repousamos.

sábado, 10 de novembro de 2007

II (rascunho)

Em chuva, escorria Nuvem.
Sozinho, malvestido, maltrapilho, fumante. Estava atrasado, e cada gota derrubada nos seus cabelos desviava um minuto do percurso. Relógio incessante. Fumava, cigarro atrás de cigarro. Dedos tamborilavam no casaco ansioso, maldizia o tempo.
Corria. Investido de fúria. Agarraria folhas voando. Redemoinhava ao sabor da tempestade. Era sujo, infeliz.
Numa esquina, tropeçava. O fim.

Observava um louco atravessar a rua e, intrigada, sorria-lhe.
“Quer vir comigo?”
Ofereceu-lhe espaço debaixo do guarda-chuva e ele, pingando lágrimas de outono, aceitou, com um aceno de cabeça.

Andaram. Ela sorria. Ele ainda escravo do tempo. Até que ela parou.

Em uma eternidade, os dois se beijaram. Ou foi ele que a beijou. Ou foi seu reflexo nas poças que o fez. O pensamento lhe cruzou a mente como relâmpago refletido nos olhos púrpuras dela. Que sorria, incessante. De qualquer forma, o tempo parou.

Já não chovia mais, jorrava sol nos becos sujos. Quem lhe dera saber quem era.
“A chuva acaba com todos nós.”
“Eu estou atrapalhando?”
“Você me faz companhia, eu lhe levo aonde quiser.”

Jamais entendeu o que se passou ali. Guardou aquele reflexo nos cofres mais ocultos da memória, para não abri-los de novo, não enquanto chovesse.
No dia seguinte amanheceu brilhando.




Nuvem era jovem, tinha seus anos levados a cabo de improviso, era desses insatisfeitos, que jamais haviam sentido aquele prazer tão simples de aquecer os pés na lareira e dormir ao sabor dos pingos lá fora. Era desses que inda descompreendia o ribombar repentino dos trovões no céu vazio. Mas não era de todo tolo: era também dos que são insatisfeitos, daqueles que já viram o belo e não o descobriram mais, dos que por mais que beba jamais satisfaz a sede. Dos que só beberia vinho.
Daquela feita, descobriu o sorriso do firmamento. Descobriu selá-lo carta com beijos escondidos sob as asas dum guarda-chuva. O suficiente para deixá-lo insone pelo resto da vida. Jamais voltou ele para casa, jamais conseguiu atender ao tal chamado do relógio.
Arrivou atrasado. Nada real havia ocorrido. Nada desculpava sua demora. Faltavam-lhe provas da glória que exibia. Não ligou para as punições, sofreu estóico. Sorria em eco. Os olhos, em outros tempos. Não importava que rasgassem sua carta.
Fora enfeitiçado. Sem saber como, mas fora. Não era chuva que bebia agora, havia assistido a um milagre. A partir daí, saberia a si em sonho.

Ela transbordava na paz roubada. Já não sorria, tossia longa e pausadamente. Mas satisfeita. Seus dentes rasgavam a carne macia de inocente. Era bruxa. Era dessas que não se encaixa em uma definição vaga, em um grupo a ser definido. Era um guarda-chuva, exposta ao vento e à água, ao sol e às vezes, a passantes encharcados.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Alegoria


Éramos todos cobertos de neve, ao rigoroso inverno
Saíamos a balançar guarda-chuvas fechados ao vento, gritávamos eco! eco! no topo das montanhas cinzas.
Pastávamos.
Eis um que mordido, se fugiu e escondeu.
Eis ovelha negra.
Saíamos a balançar guarda-chuvas fechados ao vento, subíamos à sombra mais alta,
Gritávamos para fim:
Eco...
O corvo negro, a zombar e morder,
Convidava mordendo, doendo.

Um dia desses, tomado de ânimo, tomado de flecha cravada no peito,
Dessas atiradas a cegas por ela maldita,
Ela ave - ovelha mordida;
Um dia desses saltei janela afora, jorrei sol,
Escrevi branco no céu azul.
Todos me seguiram - todos ecoando comigo;
Mas tantos abriram o guarda-chuva que levitei.
Meu algodão espalhou pelo céu e virei nuvem.

Hoje, quando abro olhos,
Fito o céu com raiva.
Tropeço-me em tantos ecos da nuvem que afoga luz,
Armo uma flecha no arco.
Que a nuvem branca virou montanha desbotada;
Que os guarda-chuvas abertos pros outros pra mim estão fechados e balançando;
Que tantos flutuantes naquele céu mais parecem escarpa dura,
Parede dura, infértil, morta.

Puxo meu arco e mordo, derrubo a nuvem, ovelha de guarda-chuva.
E que nós, aqui fugidos, escondidos,
Reneguemos as glórias pálidas de museu.
Hoje à noite comeremos a carne dos nublados,
E procriaremos aves de cor e de voz, aves da cor e da voz, corvos.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Plano de Amor

Por que toda vez que vejo uma mulher bonita ou charmosa
tenho vontade de falar eu te amo?


Meu projeto de paixão é este:
Alvejar a passante com uma tirada de chapéu,
Transmutá-la em ser sorridente, e fim.
Que toda a relação seja assim:
Deixa-a resumir-se a sorrir-me e viciar-me
Deixa-me cuidar de providenciar sua satisfação.

domingo, 28 de outubro de 2007

Morte

Jamais voltarei. Jamais. Por Heráclito, eu morri! Eu morri!
Se em todos os outros encontros que tive sofri, neste, acima de qualquer um, rasguei-me a ponto de tornar-me irreconhecível. Se tento descrevê-lo é somente para homenageá-lo. Dali então minha sina era, sempre que esbarrasse nalgum sorriso comparável, reduzir-me a exclamar, brandindo um guarda-chuva fechado: «Zut, zut, zut, zut!*» e nada além. Minha morte foi tão prazerosa, ah se foi! Alguns dizem que homem nenhum deseja a morte, discordo. Explico. Anseio a morte acima de todas as maravilhas do mundo. Desde aquele encontro terrível vagueio insatisfeito com meus eus vulgares, sou eterno visionário, insaciável ante o novo. Suicido sempre que posso, sempre que é dada a oportunidade. Mas nenhuma morte ressuscitou-me tão brutal quanto aquela. Aqui faço um parêntese. Minha morte almejada é a do espírito. Não que não me ame como sou, não, Ha! Comparado com os outros que rastejam por aí, sinto-me nas nuvens, sinto-me próprias nuvens. Mas como nuvens enxergo estrelas acima, não sossego enquanto não derrubá-las, alçar-me às suas profundezas mais inalcançáveis. Se me fosse então imposto deixar a carne, dissipar-me de todo, deixando para trás apenas as poucas jóias que já confeccionei, prantearia longamente. Feita aqui a distinção, alongo-me pela morte da alma. Sim. Naquela tarde impossível foi-me aberta uma porta, uma porta que muitos já me haviam descrito, da qual já havia lido extensos louvores, mas acreditava-a fruto da imaginação dos ébrios.
Ébrio então. Como diriam alguns, estar sempre ébrio é o único problema. Arrojei-me na grama, estirei-me, estiquei braços e pernas, ressonei, dormi eras, acordei de imediato, espiei o arredor, meus companheiros de jornada ali estavam, todos em seus lugares, todos alhures, ah sim. Caímos então, jogamo-nos do cinza fácil, atiramo-nos direto no centro das chamas, sem escrúpulos, sem pesar, queimamos, ardemos, choramos, rimos, Ha! Como foi boa aquela morte da alma, já não se percebia aonde se estava, mesmo sabendo-o; o coração gritava ‘vida!’ a cada fôlego. E corria, corria como vento, corria como vento na grama, rodeava as árvores, subia, descia, atrapalhava os cabelos soltos das francesas, cabriolava, saltava, dava cambalhotas, mais rápido do que a luz, do que o pensamento, invisível, indetectável, jamais sonhado! Sentia-se naquele momento a própria presença dos espectros do além a chamar, a convidar, e, inferno, aceitando aquele convite garanti-me perdido, perdido com gosto, talvez para nunca-mais, nos labirintos do pensamento. Sim, porque eram irresistíveis os prazeres que nos eram oferecidos. Não sei quanto aos dois outros parvos que me acompanhavam então, não posso dizer pelos seus nomes estas palavras que reclamo ao meu. Aquiesci, feliz, sabendo da longa queda que aguardava.
Se quero saber fatos concretos, se quero uma descrição do cenário, da brisa úmida, do vestuário falso, da luz no ambiente, embebida em nublagens, do pesadelo encantado que nos abraçava, da relva verde, tão verde! a agarrar nos nossos pés, das filosofias que ali criamos, do amor que experimentamos por todas as coisas do mundo, e de fora dele, das lentes novas que se abriam aos nossos olhos, do redescobrir dos mais simples objetos, da comunhão, da arte, da essência do universo que nos foi apresentada? Para que quereria eu sabê-lo? Guardo na memória o simples despertar das novas cores do mundo, dos feitiços que só se vê pelo canto dos olhos, e desde então erro pelos caminhos do convívio, a estudar os outros tantos como eu, a testá-los, a encontrá-los e prová-los, a tentar matá-los todos para que no fim só reste a mim, morto, vivo, em todos eles, em mim mesmo; também refletido numa jóia nova, na rocha, em pequenos ídolos de barro, estatuetas, monumentos, memórias e tradições, histórias, leis do cosmo, eternidade.
Aí sim sou sereno.

*em francês: « Uau! »



“Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta na Muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender”.
As Portas da Percepção
Aldous Huxley

sábado, 27 de outubro de 2007

Cárcere

Ao topo da velha montanha eu subi, lá que minha vida inteira manifestou; eu ainda estou preso à velha montanha, ainda fico pensando-a à noite, quando já não podem me ver fugir, quando já me estou sozinho com ela, eu subo a montanha aos passos calmos e aguardo. A montanha é meu lar, meu fardo. Quando desci à primeira vez, gritei-lhe um desejo: desejei eu que a visse, desejei que conhecesse sua forma corpórea, desejei que pudesse amar-lhe e não deixá-la já bem longe. Queria eu encontrá-la aqui pequena, aqui colina, aqui morro, aqui banco de areia, aqui torrão de terra, aqui no meu jardim. Mas depois de pedir-lhe tanto eu a deixei correndo, fugindo chorando, acreditando-me liberto, já saudoso do cárcere. Nisso que o tempo me foi tirado e lá fiquei, perpetuamente, servo arredio, simples acréscimo caprichoso em sua potência infinda, leve detalhe no gigantesco corpo de rocha. Ah sim, podes dizer, minha carne de lá saiu contente, considerando-se rápida e traiçoeira – minha carne é feita de roubo e mentira – com suas pernas tortas rodando ligeiro para a distância. Ah sim, podes dizer, sabia ela que não poderia ser contida em sua empreitada, sabia que se furtaria de volta ao tempo quando bem entendesse. Ah sim, ela fugiu, minha casca fugiu aos confins da régua-memória - mas esqueceu o principal: ainda estou lá! Sonhando o sonho da montanha, pensamentos lentos do monumental, simples natureza morta a lembrar os dias de correria como longínquos, como passado. Ah, meu amigo, eu sei o que vais pensar, eu sei que pareço louco aos tão comuns, mas fui tomado de sortilégio ancestral, a magia do imenso, e sou tão pequeno, minúsculo até, meu amigo, estou preso. Se algum dia fiz-te bem, se algum dia acreditaste confiar em mim, ah, eu te peço, se pelo menos imaginas que meu retorno te será proveitoso, que minha dívida te será de algum modo útil, por favor, eu imploro! Encontra-me a montanha, satisfaze meu desejo, satisfaze o desafio que lancei às forças ancestrais, sim, acha a maldita, acha-a aqui entre nós, disfarçada, traze-me ela e mata-a! Na minha frente! Rindo de prazer! Quero o seu sangue correndo ao meu redor, quero banhar-me nele, rir da vitória efêmera, rir da vida fútil...!
Como? Se desse modo poderei tornar à mortalidade? Mas se não será precisamente o contrário! Tolo! Rirei de ti também, reles pedaço de carne, Ha! És tão ingênuo... Acha-me ela. Quero desfrutar alguns segundos de grandeza antes de minha maldição volver à mente, antes de perceber minhas algemas inimaginavelmente poderosas. Nada pode deter a montanha, meu caro, somos meros grãos de pó, juntos seremos torrões de terra e nada mais. Quão longe está a eternidade da rocha da efemeridade da carne! E minha carne é feita de roubo e mentira, minha carne me trai e foge, me deixa preso à Imensa, à Única. Não, não, não. Já não posso mais viver como tu vives. O máximo que consigo é contemplar-te, escrever-te belos versos e contar-te minha história. Sou-te superior, no mais. Algum dia talvez atinjas minha glória de vassalo, meu naufrágio.
Vai! O tempo te urge! Volta depressa, e talvez sejas recompensado com alguns mínimos átomos, desses vazios, de notas de pé de página...
Vejam só, ele realmente foi! Ah, que diria a montanha sobre isso, com sua voz de uivo, seu vento amigo a roçar-lhe as faces de granito, que diria a Terrível. Consegui capturar mais um na minha sina, vejam só. Mais alguns e construirei um pequeno banco de areia, talvez não mais do que o suficiente para naufragar alguns outros e aí...! Ha!

Armadilha

Fui-me um dia ao parque em busca de inspiração. Tarde quente de verão e eu terminara meus afazeres, desejava momentos de repouso e poesia fácil. Abri-me um mapa e guiei-me pelo instinto, rodei-me de olhos fechados até tonto, escolhi o caminho. Quando não estamos em casa, qualquer lugar é bom por igual: o gosto do novo é sempre esplêndido à mesma medida, em todos os locais e paisagens; qualquer visão do desconhecido aquece a alma de euforia transitória – ela só quer a novidade, só quer irritar o Hábito. Quando não se tem planos deve-se inventá-los, deve-se rodar cego e seguir a estrada que os pés escolherem, nenhuma outra seria mais proveitosa. Fiel à minha sabedoria mundana, atingi assim o melhor parque de todos naquela cidade tão nova. Árvores, sombra, belas pessoas e agradáveis arredores. Sentei-me, ri comigo, tão velhaco, encontrara o melhor parque de todos, encontrara a melhor grama e as melhores árvores, meus bons pés, tão sábios, levaram-me àqui, alhures estaria vindo àqui em sonhos, alhures não seria tão feliz, tão tranqüilo.
Felicitava-me ingênuo, inofensivo, abri os olhos, cansado do brincar cego, do guiar-me pelas extremidades, que surpresa! Um espetáculo! E foi aí que meu plano inteiro seguiu por água abaixo e dei-me conta do erro, dei-me conta do que era tal encontro terrível com os faunos, dei-me conta de Quem me era dado conhecer ali, naquele instante. Pois estava eu satisfeito com minha vida apagada, e ria a esmo. Maldição então aquela de encontrar justo ali, no melhor parque da cidade, alguns terríveis servos da Inefável, a honrar-lhe e louvar-lhe. Mas vamos ao episódio.
Abri olhos e ouvidos ao ambiente e de imediato identifiquei logo à frente, a poucos passos de meu refúgio, o caos sendo orquestrado. Meia dúzia de fanáticos despiam-se da secularidade, desembainhavam instrumentos muitos e deles extraíam odes à sua Amada. Eram claramente servos antigos, já acostumados ao fardo: acreditavam-no dádiva celeste e divertiam-se com seu labor ingrato. Disputavam uns com os outros as atenções de pequenas manifestações da Perfeita, sua diminuta platéia de amantes, que rondava e aplaudia. Descrita a visão, passo às suas catastróficas conseqüências sobre minha paz.
De início congratulei-me e admirei, nada além. Mas conforme se deu seguimento ao culto fui compreendendo seu objetivo, vislumbrando a deusa pela qual suas vidas eles sacrificavam. E sobressaltei-me, e revirei-me, e olhei em volta para ver se não estava sonhando, o que descobri ser verdade – era um intruso nos próprios sonhos – e então em minha alma gritei e pedi socorro enquanto perdia-me nos labirintos de ilusão. Ah, como fui desprevenido! Contemplei para sempre a execução das obras apócrifas; jamais desviei o olhar. Qual lobo, colhido pela armadilha; qual amante, preso pelo pé ao túmulo da amada; qual sábio, aprisionado numa sombra de ave, talvez para nunca-mais; fiquei ali, inundado por revolta e ambição. Morri naquele momento, e hoje sou algo intermediário entre o ingênuo feliz que já fui e os faunos servis que aqui maldigo.
Por isso clamo: tenham cuidado, tenham muito cuidado, pois quando se sai à porta e se deixa os pés guiarem a jornada, nunca se sabe aonde se poderá chegar. Nosso corpo é traiçoeiro e vive a conduzir para ciladas – pudera, é pela carne que Ela se manifesta. Cabe à mente arguta decifrar suas artimanhas e guardar-se do tamanho mal que nos espera a todos. Com sorte, a carne morre sem jamais conhecer esse lado sombrio da existência, é enterrada incólume e volta à insignificância afortunada dos esquecidos.



"Imagina. Ah, eu sou um mero aprendiz. Eu estou tentando escrever, vocês estão tentando tocar. Não é a mesma coisa? Italianos. Eu peço um violino e ele tira. Vou pedir uma música. Afina esse diabo logo meu filho. A ansiedade está me matando. Viro-me, tornar mais óbvio o foco da minha atenção. Se bem que as duas ali, até agora alemãs, violinista e cellista, belo espetáculo. Por favor, desembainhem seus instrumentos. Não dá pra morar longe disso não. Meus sonhos se passam aqui, estou intruso no pensamento. - 'Ele passa, um ar sombrio, perdido em pensamentos. Não se divisa reação no seu rosto ao cruzar com os músicos de rua. É um momento solto de poesia no meio da vida cansada. Todos os outros se repetiram demais e foram esquecidos.' - Aproximo-me: intento desvendar seus sentimentos. Zombam-se e disputam, como crianças. Erram e aceitam. É tudo improviso, não há regras. Como eu posso florear esse momento? Dá para sonhar dentro de um sonho? Só o que me ocorre é interferir. O de laranja, óculos John Lennon, sou eu.
Sou teimoso, e fico aqui horas se for necessário."

texto de Munique, parque.


terça-feira, 2 de outubro de 2007

Convite

Papel,
Flutuas em correntes de naufrágio, eternas tormentas de mutação.
Persigo-te como quem sonha o acordar, aderno-te sem escrúpulos:
Sou suicida ao querer cortar-te os pulsos.
Meu corpo é o teu, e ainda foges de mim, infeliz,
Desfazes-me em tiras, mas só para melhor envolver-te:
Espalho-me pelo teu rio de navios mortos.
Quando menos esperares, estarei lá,
Invisível nas fisionomias dos teus "poetas" prediletos.
Sim, grande farsante,
Infligiste-me tamanho desespero que agora já nem sofro:
Cambaleio,
Por entre teus mares de tinta,
Trajando máscaras cinzentas de ordinário.
Querido carrasco de prazeres,
Aflijo-me com tua distância:
Como serias bem-vindo em meus lábios,
A provar-te a carne danosa,
Trocar-te as glórias de papel?
Velho inimigo,
Aguardo o dia de meu triunfo, nossa morte,
Pois enquanto me multiplico, multicor,
Teus segundos se esvaem, e repito:
És fruto do meu querer, és filho do meu pensar, és meu, meu, maldito, que não fujas, és meu, meu amado barquinho de Caronte,
Sem ti, que sou?
Nem morro, dissipo.
Impede tamanho suplício! Depressa!
Abraça-me no leito rochoso onde arranhas tua âncora!
Socorre-me destas lonjuras do comum,
Arranca-me deste oceano sempr’igual;
Comer-te-ei sem remorso,
Sorrirei ímpar.



Chama-me do que quiseres,
Fim, Amor, Musa, Paz,
Sou todos! Graças a ti!

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Nostalgia II

Me peguei olhando fotos e memórias antigas
e li e recordei de cenas que não se passaram comigo
Me esqueci. Esqueci que minha vida não começa há um segundo
esqueci que estou aqui, e estou aqui há tempos
Às vezes estamos tão presentes que só estamos assim
e fechamos os olhos para a multidão de outros eus que se passaram
Os pensamentos de hoje, que lutamos para derrubar
então, postos contra aqueles todos, aqueles verdadeiros inabaláveis
Ha! Eles riem, e eu me sinto pequeno ante a força que já tive.
Engraçado, olhando de fora agora,
para um passado tão distante,
eu vejo tudo através de um vidro de Ideal
e é bom.

Pergunto: que me vale preocupar-me sem limites
e reclamar se algo não sai como planejado
se quando eu olho para trás e lembro de tudo que já sofri
eu rio e regozijo. Quero voltar, e continuar inocente.

Tempo. Me peguei olhando fotos antigas e aí sim.
Me peguei já velho, indiferente, irreconhecível, de modos que não aprovo.
Me peguei ali, olhando para mim como se eu fosse passado
me achando tolo e inocente, criança
e arrogante e descrente, velho
Me peguei outro, e me esqueci.

domingo, 16 de setembro de 2007

Nostalgia

Vejam só que engraçado:
Estava eu agora há pouco ali, sentado solto, ruminando em tolices
e de súbito me acometi de irritar-me com todos aqueles papéis jogados avulsos no arredor
e saí a catar e a empilhar, e a arrumar e a limpar.
É daquelas horas em que surge na gente um espírito fauno
que nos faz pegar e finalmente pôr em prática o antigo plano gasto
e que não pode ser interrompido senão foge e se esconde.
Só no próximo por acaso que a gente esbarra nele atrás do sofá
e começa a dança louca novamente.
Pois bem.
Dei em mim vibrando um frenesi de arrumação e já ia jogando pilhas de manuscritos janela abaixo enquanto fortificava-me num castelo de cartas amassadas seguindo a minha lógica caótica e obsoleta.
E tanto tempo gasto nisso que aos poucos o espírito faceiro me foi revirando a alma e arrumando tudo lá dentro também.
E tanto foi que de repente estou eu olhando pro velho retrato que já vi e revi
e de repente estou eu jovem, fixo e preso na moldura, olhando para eu envelhecido estranho, a divagar pensamentos simplórios e bruscos, a esquecer que me deve a vida e o sorriso tolo de nefelibata.
Eu digo, todo mundo sabe que às vezes a gente esbarra em si mesmo e ri, surpreso de não ter se percebido antes. O que todo mundo esquece é que nessas vezes em que esbarramos em nós mesmos nós devolvemos o olhar de louco e não só nos distraímos com o que foi mas também gritamos e berramos pelo que virou.
Não,
Não sei se foi aquele momento idílico de autocontemplação prazerosa
do velho mestre a chafurdar nas brincadeiras de juventude.
Não, não, o que eu senti agora há pouco foi um terrível solavanco
de alguns gênios no meu interior acordando do sono terrível
que os outros que vivem a vangloriar futilidades haviam induzido por venenos e soníferos.
E os pobres ao se levantar choraram e maldisseram
e dentro de mim houve confusão tremenda.
É assim: lembram-se do espírito selvagem
que eu encontrei atrás daquela pilha suja de pensamentos
que me fez começar o samba inteiro?
Pois é. Na sua reviravolta ele acordou todo mundo aqui dentro
e agora fiquei numa revolução interna
e enquanto sonho em festas passadas o futuro me balança indizível
Sabe, às vezes a gente esquece que viveu
e se vocês não pensam que eu nasci ontem, pois é, eu pelo menos pensava assim até há pouco.
Deus abençoe essa memória falha e incompetente
que me permite ser-me com originalidade
que senão naufragava num constante sempre
e virava meu previsto fim, desde o início.
Eu digo: Viva! Estou vivo! E já já me esqueço e fico me lamuriando até o próximo solavanco dessa estrada esburacada que é a vida.
Acelera, ó meu bom homem. Que devagar é tão calmo que eu durmo. E bocejo.
Quem sabe aonde estou indo, quem sabe se eu não sei?
Fim.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Cena

Tem uma cena:
Que no alto da montanha, sozinho, grita.
Cadê você?
Várias vezes, numa voz meio morta.
Na outra, pode ser o menino velho, chorando numa garrafa
guardando nela a pergunta.
Garrafa de vinho, com que embebeda sua mulher.
E lhe fala eu te amo.
Ah, conversar com você é como falar com uma garrafa vazia!

Musa Ruiva (de Füssen)

Ela é ruiva, ela é sonho.
Seus cabelos queimam como o vinho e sua alma esconde um livro vazio.
Ela arde e brilha como o sol, e intriga, como o silêncio.
É óbvia e perfeita como a jóia,
Tentadora como a pergunta,
Ela é rubra,
Ela é fogo,
Ela é.

Ela é um lento despertar, uma ponte entre o onírico e o possível.
Uma estrela a brilhar sozinha na noite.
E graças a ela tudo tem sentido,
Ela é o objetivo,
O pólo norte dos compassos,
O guia dos navios.
Ela é uma vela solitária aquecendo o frio impossível da solidão.

Ela é três pontos finais seguidos,
Certos e repetidos,
Findando numa vasta reticência.
Um livro fantástico,
De prólogo impecável,
Com o final por compor...

Chama! Ela chama!
Ela é familiar, lembra-se dela?
Ela é a Lua.

De Budapeste

Hoje é aquele dia que acorda em longas demoras, abre os olhos sem vontade e calça os sapatos do hábito. Hoje eu me visto de chapéus e desalinhos, arrasto meu corpo... não.
Hoje não é um dia, é uma espera. Uma pausa na corrida, hoje paro e descanso, hoje sou só, hoje não vivo, sou sombra, perambulo e vago, sou fantasma, sou etéreo, hoje tropeço em mim mesmo, hoje sou mais um, hoje não tenho nome, sou invisível, hoje não respiro, hoje não reclamo, hoje não sou. Esse dia não faz parte do futuro, nem restará no passado: está fora do tempo e da memória. Hoje eu posso ser fraco e chorão, hoje eu nem ligo. Hoje brinco com lembranças sem juízo, não avalio, hoje não amo, hoje não dói. Hoje é aquele dia que acorda cansado demais para ser cinzento, cansado demais para ser cansado, hoje o sol se demora e passa fraco e velho. Hoje... ah, que bom que hoje é só isso: um dia a mais. Hoje é uma pausa, e hoje acaba daqui a pouco.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Caos I

Vou gritar aqui
ADEUS!
Que se morra o inverno!
Eu não agüento mais o desespero fútil dos que não foram Ah,
meus filhos.
Ah, meus filhos, Vão-se embora para fim!
Que suas perucas largas estão afogando meu mar de sonhos
E eternamente penso: quem são os dois carinhos dois
Quem são os meus, quem é o eu e tu não sabes?
Barril de paródias soltas eu!
Despejo teu conteúdo na massa,
Na, no sufoque expectativo -
Matar o desejo da comparação:
Não - me - com - pre - en - da !
Azul.

A Musa (inalterado)

Vi uma musa.
Minha musa adentrou a Vida como nonada. Fugidia, zombou-me ao rondar desapercebida. Mas, singular, na sua pluralidade de interpretações, raptou meus olhos que fuzilavam a esmo. Sua carne dourada, seu sangue mesclava-se ao infinito... Aparição maldita! Criei-te em ti mesma, impus-te tua realidade inventada. Imagem eterna dos meus sonhos, incorporo-te de súbito, irremediável. Quero-te então sem cessar. Bacante, poderias ter-te morto com um gesto, em vez disso preferes fustigar o mundo, atiçar-lhe os astros, alçar-lhe às profundezas mais inalcançáveis do teu céu. Condenas-me escravo distante, à lembrança do lânguido desespero por ti inoculado nesta alma maculada. Tua cruzada contra minha felicidade é ligeira, esfarelas o Hábito com teu sorriso de ninfa, corrompes a Beleza num átimo. Deusa caída, crucificas-me na Indiferença, largas-me sem porvir no teu rastro de destruição. E iludes-me com a delicadeza fingida duma filosofia de amores. Enganas-te, não sou tão precavido, não desconheço as correntes que me situam no oceano do teu entorno. Pranteio a dor perpétua de saber-te aqui, entre os desprovidos de arbítrio. Se houvesse a esperança de enterrar-te, extinguir para sempre esse caos terreno que te marca alheia ao Destino, mas não! Tua Imortalidade é verdadeira no fantasma do teu regressar, sei bem que a liberdade é ilusão. Bruxa, retornarias no clímax de minha obra, para tirar-lhe o sentido e torcer meu espírito submisso. O corpo que deténs agora será livrado num segundo, se primeiro eu fingir conhecer-te os subterfúgios e interferir no teu ser intocável. E meu alívio jamais perduraria, com teu retorno póstumo no semblante mais inesperado. Sou passivo servente dos teus desígnios, anja solene dos meus pesadelos, amazona pura cativada pela ordem, ímpio não-ser das mágoas mais queridas que já obtive. Amo-te, eternamente! Aceito meu encargo acima de todo o possível, tua voz muda é a sinfonia que rege meu labor. Sorrio o sorriso dos vencidos, a amargura dos apaixonados. Agradeço-te, avatar secreto da minha miséria. Resumes minha existência no silêncio que sobrevêm à tempestade, o recordar dos teus macios pecados.
Expurga-me da razão, é tudo que peço.

Maldição

Se escrever uma memória é dar-lhe força
Vou, com este sortilégio,
Inventar meu próprio destino.
Vou torná-la meu espelho:
Quando escrever um livro me escreverei;
E vice-versa.

Página 4

Espanto-me com minha própria (?) voz, desusada desde a eternidade

O gesto de destampar a caneta envolve uma construção:
Arroubo de improviso!
Ah! As pessoas passando não sabem, não, não sabem
esse saber ingênuo, das letras aqui desenhadas.
Com certeza.
Se idolatro, se idolatrarei, se idolatrei, se ídolo crio,
Ah, homenageio-o neste atuar.
Vivo minha obra,
Tentando esmiuçá-la para fazer juz a tão infindável abismo descrito saltando.
Hoje, estou aqui marcando partituras do meu mapa,
carta cartográfica aos coloridos daquela escada.
Degrau por degrau,
subindo na horizontal,
esquivo um bocejo,
rio um devaneio.

Página 3

Encarno, incorporo ao sonho, crio e imponho, ao papel do firmamento, este cenário disfarçado, os meus mil amores, a música que toca apenas para mim.

Já conhecer os caminhos, já saber os que gosto: Aqueles também fazem sentido. ó céticos, são tão válidos quanto os belos! Mas não o são...
Beleza inenarrável, vislumbrar-te é vinho das nuvens derramado no desatento.
Futuro e passado, tempo
Planejei a ponto de confundi-los.
E se destoarem, avalio: Estão encenando o que admiro ou vão repetir o velho e desajustado ritornelo?
Que a magia do vento e a Terra me engula!

Por Heráclito, Morri (Título de um luto póstumo ao viver desenfreado de outrora)

(Senti como se tivesse chorado, chorado rios imensos, chorado corpo inteiro, chorado)

Chove
na cidade perfeita
já não se sabe mais se se está sóbrio
pois na verdade jamais o estamos
e cada frase cai como uma pincelada
Que incrível é a escrita, reduzir este universo inteiro em uma palavra
em uma baforada,
em um gesto,
correr! gritar! pular e dançar!
está tocando música meus amigos
está tocando música: é o silêncio
pare e olhe.

As lágrimas do céu estão borrando o estático
estão querendo fazê-lo retornar à vida que representa

e tudo é só: "um momento"
estou só? solipsismo, me agüente!
cavaleiro do apocalipse
vou me afundar em um mar de palavras
descrever a morte súbita do aprendiz
tenho como mestra a realidade
fechar os olhos? para quê?
quero todas as milformas do impensado
quero chorar mais o desnecessário
há tanto o que relatar. Mas sou eu o observador
Sou eu refletido no olhar alheio que sou meu palco.
Represento para mim mesmo! Amo o espelho:
é meu amigo, sou eu!

sobre esses próximos 3:

algumas anotações aqui
do meu caderninho do rembrandt
escritas num dia um tanto interessante
que, se nao me engano, foi o melhor dia
eu digo, até entao foi.

nao, nao fazem muito sentido.
nem sao bonitos.
mas foram o que saiu na hora
naquela hora interminável
feita de horas roubadas do sonho.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Desliga o Tempo

Desliga o tempo e vai dormir,
estou com saudade dos teus sonhos.
O sono quer chorar pesadelos,
rir o dia inteiro,
e esquecer, por fim, aquilo que importa.

Acordar: egoísmo da alma.

a título de explicação

nao, nao vai fazer sentido algum
mas vai ser tudo que eu escrevo
e voilà, nao poderei parar mais.