sábado, 10 de novembro de 2007

II (rascunho)

Em chuva, escorria Nuvem.
Sozinho, malvestido, maltrapilho, fumante. Estava atrasado, e cada gota derrubada nos seus cabelos desviava um minuto do percurso. Relógio incessante. Fumava, cigarro atrás de cigarro. Dedos tamborilavam no casaco ansioso, maldizia o tempo.
Corria. Investido de fúria. Agarraria folhas voando. Redemoinhava ao sabor da tempestade. Era sujo, infeliz.
Numa esquina, tropeçava. O fim.

Observava um louco atravessar a rua e, intrigada, sorria-lhe.
“Quer vir comigo?”
Ofereceu-lhe espaço debaixo do guarda-chuva e ele, pingando lágrimas de outono, aceitou, com um aceno de cabeça.

Andaram. Ela sorria. Ele ainda escravo do tempo. Até que ela parou.

Em uma eternidade, os dois se beijaram. Ou foi ele que a beijou. Ou foi seu reflexo nas poças que o fez. O pensamento lhe cruzou a mente como relâmpago refletido nos olhos púrpuras dela. Que sorria, incessante. De qualquer forma, o tempo parou.

Já não chovia mais, jorrava sol nos becos sujos. Quem lhe dera saber quem era.
“A chuva acaba com todos nós.”
“Eu estou atrapalhando?”
“Você me faz companhia, eu lhe levo aonde quiser.”

Jamais entendeu o que se passou ali. Guardou aquele reflexo nos cofres mais ocultos da memória, para não abri-los de novo, não enquanto chovesse.
No dia seguinte amanheceu brilhando.




Nuvem era jovem, tinha seus anos levados a cabo de improviso, era desses insatisfeitos, que jamais haviam sentido aquele prazer tão simples de aquecer os pés na lareira e dormir ao sabor dos pingos lá fora. Era desses que inda descompreendia o ribombar repentino dos trovões no céu vazio. Mas não era de todo tolo: era também dos que são insatisfeitos, daqueles que já viram o belo e não o descobriram mais, dos que por mais que beba jamais satisfaz a sede. Dos que só beberia vinho.
Daquela feita, descobriu o sorriso do firmamento. Descobriu selá-lo carta com beijos escondidos sob as asas dum guarda-chuva. O suficiente para deixá-lo insone pelo resto da vida. Jamais voltou ele para casa, jamais conseguiu atender ao tal chamado do relógio.
Arrivou atrasado. Nada real havia ocorrido. Nada desculpava sua demora. Faltavam-lhe provas da glória que exibia. Não ligou para as punições, sofreu estóico. Sorria em eco. Os olhos, em outros tempos. Não importava que rasgassem sua carta.
Fora enfeitiçado. Sem saber como, mas fora. Não era chuva que bebia agora, havia assistido a um milagre. A partir daí, saberia a si em sonho.

Ela transbordava na paz roubada. Já não sorria, tossia longa e pausadamente. Mas satisfeita. Seus dentes rasgavam a carne macia de inocente. Era bruxa. Era dessas que não se encaixa em uma definição vaga, em um grupo a ser definido. Era um guarda-chuva, exposta ao vento e à água, ao sol e às vezes, a passantes encharcados.

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