quarta-feira, 28 de novembro de 2007

I (rascunho)

Cena I:

Digladiando as setas do relógio, fazia uma finta, ou cruzava-me os braços, esperava, atacava e esquivava. Mas perdia terreno, e corria - o relógio não conseguia ignorar: ou lutava sem esperanças, ou morria. E ele chovia em mim, e me estava encharcando; a água percorria até as veias azulando o dia, esvaindo como fios destrançados. Cada gota roçando meus cabelos soava um segundo a secar na clepsidra, deusa-mãe da pressa reinante. Os pés não se viam lado a lado há tempos: seu amor platônico ignorado enquanto cumpriam o papel sagrado de esticar e dobrar espaço e tempo - quando de repente gritaram em protesto: abraçaram-se na virada da esquina, derrubando-me, golpe de estado, atiraram-me de cabeça nos mares da derrota, enormes poças d'água de tempo perdido. Quase afoguei, levantei aborrecido, praguejei.
Aí sofro um convite.

Cruzo a rua tranqüila, cantarolando comigo mesma canção nenhuma, simples acompanhamento do tamborilar das gotas nas asas do guarda-chuva, a percussão imprevisível. Música de dia carregado, é música de quem guarda o sol escondido atrás da boca, ali debaixo da língua; ou de quem quase ouve seu sono em leito de nuvens, os roncos de trovões. De quando em quando balanço-me toda e deixo a água acordar rumorejando. Molhar um pouco assusta e faz viver; saio correndo então, leve feito sabonete escorregando pelas ruas lamacentas, soando forte em ambiente, dividindo o mundo em dois; até que ouço um Outro, um murmurante à quase inaudível por trás de sua capa de mau tempo, soçobrar numa virada de esquina, indo-se mergulhar na minha frente. Levanta-se, praguejando confuso, espalhando sons diversos em tons diversos em direções diversas, e no que sou invadida por intenso universo de distúrbio e explosão, e no que os segundos demoram-se a martelar nas nossas cabeças,
"Posso ir contigo?"

Do alto da janela miro a rua, a chuva fina incessante lavando ar como pára-brisa. Desenho solto e leve, sem pensar, cabeceando sono, dormito. Acordo em que um Outro desabando em poça d'água, quadro berrante de outro matiz, líquido disparando por todos os lados, um meteoro a espatifar oceanos. Suas roupas todas transfiguram-se de cor em tantos tons que ao levantar-se ele é puro arco-íris metamorfoseante. Seus olhos faíscam, seu peito queima, posso até ver-lhe as pragas que imagina a saltar pela boca. E nisso soma-se à cena a mais óbvia e inesperada figura, trajando longas capas amarelas de chuva, coroada dum enorme guarda-chuva negro, pilar de escuridão e calma, que irrompe no multicor descaso alheio para ocasionar o fim da tempestade.


Cena II:

Na praia, me aproximo devagar, pisando com cuidado as tantas dunas de areia branca-amarela-marrom, multifacetada em tons escuros claros, sombreadas aqui e ali de imprevisível, iluminação difusa do dia azul-cinza, dia de céu uniforme estático, céu plano-de-fundo, teto liso. E sigo esmagando as esculturas mais insensatas e criando escombros de todos os tamanhos, rodeio o horizonte com os olhos vastamente apertados, pausando eras a cada obstáculo da paisagem, avaliá-lo, criticá-lo, imaginá-lo em tantas diferentes posições, guardá-lo, tão familiar mas irreconhecível, até que capturo ao canto dos olhos um aceno, uma expressão, um rubor percorrendo as faces: ela, trajando tantas cores que já nem nomeio, sorrindo alva iluminando o ambiente. [tudo não seria cinza até ela surgir? pelo menos um pouco.. reescrever] Estaco, e, perdido no jogo de luzes, tateio uma página coberta de idéias e reflexos, e ponho-me a duelar com as cores [?] desembainhando canetas e lápis [ele deveria era fazer um aquarela], colorindo e esboçando sonhos, mundos.
Desenho.

As longas ondas estouram placidamente, longa e calmamente - infinitos continentes aportando e despedaçando, indo-se em vão, encabeçados de bolhinhas a estourar agudas, a arrastar areia em todas as direções, desviando dos banhistas, ondulando ao vento. [] E os passos, tantos, esmigalhando o solo de silêncio pé ante pé, envoltos num murmurar incessante de vento nas orelhas, um suspiro interminável, carregando em si tantos outros, ensurdecendo-me a muitos amigos, atrapalhando diálogos a vozes variadas, torcendo temas, universos encantados que se diziam ali para mim, o resmungar longínquo de companheiros atravessado pelo rima-rima do coração e do sangue pulsando, do marulhar da respiração. E um novo som desperta-me do transe, e percebo num espirrar tão característico meu acompanhante, viro-me ao seu encontro e grito-lhe. Ele ouve, e responde grato, sai-me a correr na minha direção.
Sorrio.

Mormaço, dia nublado, domingo, saía apressado pela areia ardendo quente nos pés, percorria a multidão, ensurdecido e confuso, cego pela massa e pela luz, fotofóbico, cruzava em passos rápidos já suando, recusando os ambulantes, desviando de tantos inúmeros passantes que mal notava, só o suficiente para classificar e esquecer, no meu mundo preto-e-branco de sombras feias e ruídos sem nexo, de claustrofobia, de tédio e irritação, me balançava aflito varrendo a paisagem sem dar atenção aos detalhes, só para somá-la à conta interminável de segundos perdidos. Fui até a beira-mar esfriar os pés, fui pego num estoirar de vaga e, assim, finalmente recordei doutro dia, doutra água, e me inflei de energia como pipa e saí carregado ao vento sem rumos, até de súbito notá-la a presença melodiosa e colorida, perfumada e única; esqueci pressas e calores, beijei-lhe nas sombras do guarda-sol, ou só imaginei, ou só desejei, mas ela me puxa a mão sorrindo sempre e cantarolando.
E repousamos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário