quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Como ler

dão-me uma raiva as pessoas que lêem-lêem
lambem-lambem
lêem uma vez enquanto assistem televisão
uma vez e meia.
lêem pela metade.
lêem uma palavra direito, e falam "Aha!"
saem a comentar quatrocentas páginas, sorridentes
(já podiam ter ido para a casa que os pariu,
dormir e escovar o cabelo)

que diabos?
se é um texto, se é escrita
(aviso que isto aqui não é escrita; é só um palavrão)
então é igual a uma escultura:
não basta uma foto!
faltam os ângulos...

uma vez
comentaram para mim:
"seu texto fica melhor quando lido de cabeça para baixo"
demorei um ano e um dia
para entender
que ele lera meu texto
de trás-pra-frente.

amigos!
letrinhas são como um monte de formiguinhas
estão aí,
à disposição,
para que se brinque de assassínio e de perversidade.
vivem só para serem pisadas, em números de sapateado.
Um texto é feito para ser invertido,
para ser dobrado e amassado,
para ser usado como papel-higiênico.
Um texto é útil.

Se lhes ensinaram no colégio
que as páginas ficam em pé sozinhas
todas reverenciando o deus-sol
calmas e fáceis;
lembrem sempre disso:
aqui, onde eu moro, venta muito,
e as folhas estão sempre na ordem errada.

leiam uma
duas
leiam os dedos dos pés
tentem ler um texto
como se ele estivesse na frente dele mesmo.
Tirem-no da frente.

Jornal
só serve
para fazer barquinho
e avião
e principalmente chapéu.
não leiam jornal.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

pânico

eu devia ter falado de pânico, de claustrofobia, tremendo tanto com medos de anormal, de drogado.
ofegante sem parar, meio desesperado, e isso foi o mais incrível
mais do que todo o espetáculo, a verdadeira ação foi interna, foi no peito, doía tanto, a percepção, algum tipo de infraestrutura básica fora abalada, não era em nível conceitual, ou mesmo de sentimento: era antes disso tudo, eu doía e perdido.
eu já nem lembro. e os nervos à flor da pele, saí correndo do banheiro, estava quase chorando de desespero, e sem saber porquê. só me fez mal.
se me encostassem, se me viessem me tocar, eu gritava, eu ia explodir de horror, um desprezo-desespero, estavam todos tão doentes e eu só queria sair dali, só sair dali, socorro.
Greenaway falava tanto de aprisionamento, em malas, em prisões, em casamentos, e eu só me sentia encurralado; no fim, era uma sensação muito profunda, muito mais profunda do que amor ou ódio: era simples vertigem, simples pânico desesperado de se ficar esperneando horas afogado, espasmos, espasmos, não ter jamais por onde sair daquele pânico horroroso, frenesi ébrio e sem nexo que eu já vislumbrara em noite, que tenta ser pura dor horrorizada; dor das aflições, dos tremeliques, dos tiques ensandecidos, de todos os músculos tensos se contraindo, um corpo eletrocutado à espera de mais dor, dor que nunca vem; porque é o mais terrível de todos, que sabemos que vamos morrer e nunca morremos, e os segundos de certeza antes de alguém esmurrar-lhe a face, espancar-lhe por horas até nunca com barras de ferro, aquela certeza aterradora de que haverá dor, e será pior de tudo: odiar o presente, odiar a vida, odiar a existência, querer ser simplesmente erradicado, arrancado do mundo feito um carrapato; é a certeza de que será um Monstro - pois que metafísico, monstro imaginado, alucinação febril. a única sensação é de um total esmagamento sem ar, ser prensado por um milhão de toneladas; sensação de presa, cercada pelo predador, sabendo-se com segundos contados, o desespero mais forte do mundo, em que tudo conspira para arrebentar a própria carne; quanta dor não exala pelos ares, não irradia de chamas por essa simples covardia impossível - invertida, o maior covarde de todos, e já não tem pra onde ir, e aí o mundo vira de cabeça para baixo e é ele quem vai pular nos pescoços de todo mundo; na verdade ele é o pior de todos, ele desperta em fera abominável, de dentes enormes de arrancar carne, de rasgar rostos ao meio como folhas e jogar na fogueira dos olhos tresloucados.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Verdeacaminho

texto que fosse puramente intensidade
repetição tediosa de mil e uma imagens diferentes todas em guerra, tão em guerra que não sobra nada para contar uma história.
Texto que começasse no meio e não tivesse fim: gasto inteiro para expressar apenas uma palavra, um gesto, nada mais. Mostrando o quão desesperador não é um mísero segundo, texto que nos obriga a ler desesperados até a última linha gritando "chega!" mas hipnotizados, até o fim, quando termina e tão abrupto que dói mais ainda, e o mundo é o lugar terrível, e fugimos para fumar um cigarro, vomitar no banheiro, chorar.
lembro da primeira vez em que fui a um concerto de música clássica, e eu sabia que ia ali ver uma forma artística que até então me era desconhecida, e por isso me foi tão terrível, porque me abri completo, e no fim, que importava o que se passasse, eu abria meus poros ao mundo, ardendo, arrepiando como os bebês que choram ao engolir o primeiro ar, em seus pulmões virgens.
Não que seja bom: talvez pelo contrário, só faça mal, só deixe irrequieto, só atrapalhe..
Peter Greenaway estuprou minha vida.
( Dizer lisérgico ou esquizofrênico é lugar-comum, mas quem sabe que não é nada disso. Uma droga, na acepção terrível do vício em enlouquecer, em usar para libertar a mente, para abrir um outro lado da experiência... )
Houve pelo menos três fases: de início buscava simbologias, então desisti e fiquei perdido, desorientado. O espetáculo tirava-me ponto de referência e eu, sozinho, em um canto escuro, me desligava do real para adentrar uma tela múltipla sem tempo correto, sem espaço definido. A explosão das amarras em meio a uma sucessão de cortes à navalha do tecido híbrido tão natural que nos recobre o mundo como um cobertor quentinho antes de dormir, foi-me acelerando o pensamento, quando que já nem acompanhava as imagens.
Ao pousar no reino da aceleração suprema, podia brincar com as paisagens e as lembranças, escalando de tanto em tanto pelos estímulos de apoio. No enorme Rio da realidade, foram-me espalhadas vinte mil pedrinhas, nas quais aterrissava uma a uma, todas tão elásticas de trampolim, só me impulsionavam acelerar, a correnteza que quando vi já subia a cachoeira de cima para baixo invertida.
Nada explica uma tal aceleração, e, sem referência, cortada no meio como um despertar (ai! como dóem os despertares para nós que sonhamos tanto!) cada aplauso sangrava os ouvidos mais e mais, e me engolia o ar. De repente, em meio ao vôo, o combustível acaba, e batia as asas torrencialmente, mas que não bastava, e afogava no ar vazio. Mais do que o início tão brutal, tão desprevenido, o fim saiu o mais terrível de tudo, e em mil vidas ali desmaiei, morri, acabei... Recriar Tempo e Espaço, de maneira que invadissem o passado a ponto de jamais terem saído Dali, não há palavras para o horror destes pulmões pulsantes de trevas. O primeiro sopro de ar que engolimos, entrando na vida a tapas e socos e chutes dos médicos tão rígidamente certinhos em suas vidas bem-compostas de torturar recém-nascidos neste inferno queimando virgens os pulmões puros de inocente - deve ser maravilhoso cair de avião, uma queda de cem anos, só o suficiente para nos deixar amá-la. E estapeavam a pele macia do ar, em suposta homenagem, quando deviam preocupar-se em encher o cômodo doutra coisa que não oxigênio, de algo calmo e venenoso, mas não! que só sabiam balburdiar de maneiras incompreensíveis, por metros e quilômetros, e toda uma ontologia de ruído doloroso pois que tão habitual, que tão por um segundo esquecido - como eu odeio os aplausos em fim de espetáculo! Só me causam desprezo, só isolam, porque são cabeças vazias construídas até com elevador, e sobem e descem quando querem, sempre no mesmo lugar - enquanto as outras, as minhas, que são como plantas e ervas daninhas, se aferram ao solo, fotossintetizando um longo prazer estirado ao Sol, para quando forem arrancadas, com todos os machados do mundo, urrarem velozes, perversas, ardendo corpo inteiro, doendo infinito de masoquismo impossível - pipas ao vento, engolindo e arrotando raios, transformando céu e terra, estendendo suas raízes brilhantes pelas nuvens até viver de novo em paz, paz nefelibata; mas eis que acaba a tempestade (ai! como amo os delírios sem gravidade, em que as coisas saem voando de pernas pro ar, o vestido das bailarinas levanta, as árvores, os postes, tudo iô-iôs gigantes de gás hélio cabriolando como longos cabelos da Terra num grande aquário maravilhoso de reflexos e espelhos) eis que findam as asas deste objeto voador não-identificado, pires voador, em que os Deuses londrinos tomavam seu chá das cinco enquanto nos jogavam xadrez com as vidas; outro dia descobri que minha cidade está coberta por ladrilhos de pedra portuguesa, pretos e brancos, em que posso tocar piano, imaginar partidas gordas de xadrez - que são os pedestres senão peões avançando as casas como ninfomaníacos, atrás da próxima peça que irão comer; mas eis que finda de escorrer a tinta-sangue do sacrifício humano-animal-cristal-nave de papel-jornal, e a máquina de escrever metralhadora começa a gemer sob o peso das palavras escorregadias...
O sentido da escrita arrasta o mar em pura calmaria até o porto, fim da viagem, e não é à toa que os marujos saem ébrios de continente a trocar pernas no solo instável de sua terra natal.
Estamos muito habituados a tomar ônibus, a ver amanhecer e entardecer longamente, a palavrear futilidades em constante (bom-dia como-vai?). Quão abissal nos soa, nós que jazemos num mundo de superfície fácil e cambaleante, aquela nota só arrombando as vestes do comum. Ser de uma velocidade só, que nos atropela e fere os ouvidos com suas rodas de aço esfolando nosso marasmo modorrento, e que craveja sua seta de movimento aos poucos.
Se nos seduz, é porque temos dentro um demônio perverso, verdadeiro ser ímpio amante da destruição das paredes e das vidraças, que sobe aos ombros entrando pelo rabo, e ainda nos convence a largar estas âncoras bonitas de plástico cromado, compradas aos lotes em seis vezes de promoção.
Uma velocidade só, a da horda, a da matilha, e se nos agarramos ao furacão, é porque suicida.
O jazz mais livre sorri este efeito de embriaguez permanente, e não apetece ao dia-a-dia. Só de virar baldes de tinta na tela, em constituir um sítio arqueológico portátil, ao levar ao olho do tornado (o eu da língua dos londrinos) vemos o mesmo mundo em outros olhos. Minha casa passa voando circulando ao meu redor, já chamaram isso de morte (quando a vida goteja inteira desde os princípios diante dos olhos) mas há um fim para tudo.
Peter Greenaway não é um gênio metafísico - no máximo gênio maligno, Djinn; arauto safado de uma prostituição das mães.
Hahaha! Da risada dos que se deixam embebedar pelas putas, sabendo que elas lhes comerão as tripas como sereias. Ulisses, aquele não-Pessoa, ningúem furou meu olho, deixou-se enfiar num furacão de cantorias assassinas - foi arrancado de lá, não sei como não saiu louco, ele que não existe, virou um monstro a passar-se de ovelha com sua figura ilícita.

domingo, 2 de novembro de 2008

Lugar-comum

outro dia ouvi:
'coligação de mais-de-um avulso de mil-metros'
é o que se chamava, antigamente, quando as pessoas sabiam falar direito, de 'grupo de gigantes'.

ouvi também, com minhas orelhas:
'milêuma de processos de rochização, de amálgamas afivelados em seus assentos de ejeção'
o que sempre reconheci como um monte de metades de idéias, lançadas ao espaço pela filosofia louca de um lugar-comum.

É isso aí que eu batizo de hifenização da sociedade;
palindromização da sociedade;
desconstrução da sociedade, sociedadização da sociedade s.a.
Bando de termos loucos e bonitos - não dão certo e não fazem sentido.


Eis que vêm, e perguntam:
'Ora, quem é essa tal de sociedade - com quem você anda saindo, dia e noite, e volta só na segunda-feira à tarde,
bêbado,
sujo,
em trapos?
Essa piranha que te levou a falar mal dos sentidos engraçados,
daquela fase azul daquele pintor feio,
de um macaco em cima da árvore - que bonito! que bucólico!
de um não-sei-o-quê ilegítimo que só atrapalha na hora de transar?
Logo tu que antigamente era safado,
que gostava de desenhar mentiras na parede,
que não sabia dançar;
Logo tu que nunca soube sonhar em voar?'

Ah, não sei nada disso, eu só digo, sem saber o quê:
hifenizem-se, neologizem-se.
ih! inventem seus próprios léxicos de nadafazeres inúteis.
aí nós poderemos digladiar fantasmas, sem lençol - vai ser divertido! vai ser infantil, mas dane-se, que é festa-sesta na cidade-aventura de Mil-direção!

'lençol' - isso é o que eu chamava de papel branco,
papel útil para queimarmos em nossas obras desnecessárias de reinvenção.
também conhecidas, pelos sociólogos, como vandalizacionismo;
inadequadas à futura geração