terça-feira, 18 de novembro de 2008

Verdeacaminho

texto que fosse puramente intensidade
repetição tediosa de mil e uma imagens diferentes todas em guerra, tão em guerra que não sobra nada para contar uma história.
Texto que começasse no meio e não tivesse fim: gasto inteiro para expressar apenas uma palavra, um gesto, nada mais. Mostrando o quão desesperador não é um mísero segundo, texto que nos obriga a ler desesperados até a última linha gritando "chega!" mas hipnotizados, até o fim, quando termina e tão abrupto que dói mais ainda, e o mundo é o lugar terrível, e fugimos para fumar um cigarro, vomitar no banheiro, chorar.
lembro da primeira vez em que fui a um concerto de música clássica, e eu sabia que ia ali ver uma forma artística que até então me era desconhecida, e por isso me foi tão terrível, porque me abri completo, e no fim, que importava o que se passasse, eu abria meus poros ao mundo, ardendo, arrepiando como os bebês que choram ao engolir o primeiro ar, em seus pulmões virgens.
Não que seja bom: talvez pelo contrário, só faça mal, só deixe irrequieto, só atrapalhe..
Peter Greenaway estuprou minha vida.
( Dizer lisérgico ou esquizofrênico é lugar-comum, mas quem sabe que não é nada disso. Uma droga, na acepção terrível do vício em enlouquecer, em usar para libertar a mente, para abrir um outro lado da experiência... )
Houve pelo menos três fases: de início buscava simbologias, então desisti e fiquei perdido, desorientado. O espetáculo tirava-me ponto de referência e eu, sozinho, em um canto escuro, me desligava do real para adentrar uma tela múltipla sem tempo correto, sem espaço definido. A explosão das amarras em meio a uma sucessão de cortes à navalha do tecido híbrido tão natural que nos recobre o mundo como um cobertor quentinho antes de dormir, foi-me acelerando o pensamento, quando que já nem acompanhava as imagens.
Ao pousar no reino da aceleração suprema, podia brincar com as paisagens e as lembranças, escalando de tanto em tanto pelos estímulos de apoio. No enorme Rio da realidade, foram-me espalhadas vinte mil pedrinhas, nas quais aterrissava uma a uma, todas tão elásticas de trampolim, só me impulsionavam acelerar, a correnteza que quando vi já subia a cachoeira de cima para baixo invertida.
Nada explica uma tal aceleração, e, sem referência, cortada no meio como um despertar (ai! como dóem os despertares para nós que sonhamos tanto!) cada aplauso sangrava os ouvidos mais e mais, e me engolia o ar. De repente, em meio ao vôo, o combustível acaba, e batia as asas torrencialmente, mas que não bastava, e afogava no ar vazio. Mais do que o início tão brutal, tão desprevenido, o fim saiu o mais terrível de tudo, e em mil vidas ali desmaiei, morri, acabei... Recriar Tempo e Espaço, de maneira que invadissem o passado a ponto de jamais terem saído Dali, não há palavras para o horror destes pulmões pulsantes de trevas. O primeiro sopro de ar que engolimos, entrando na vida a tapas e socos e chutes dos médicos tão rígidamente certinhos em suas vidas bem-compostas de torturar recém-nascidos neste inferno queimando virgens os pulmões puros de inocente - deve ser maravilhoso cair de avião, uma queda de cem anos, só o suficiente para nos deixar amá-la. E estapeavam a pele macia do ar, em suposta homenagem, quando deviam preocupar-se em encher o cômodo doutra coisa que não oxigênio, de algo calmo e venenoso, mas não! que só sabiam balburdiar de maneiras incompreensíveis, por metros e quilômetros, e toda uma ontologia de ruído doloroso pois que tão habitual, que tão por um segundo esquecido - como eu odeio os aplausos em fim de espetáculo! Só me causam desprezo, só isolam, porque são cabeças vazias construídas até com elevador, e sobem e descem quando querem, sempre no mesmo lugar - enquanto as outras, as minhas, que são como plantas e ervas daninhas, se aferram ao solo, fotossintetizando um longo prazer estirado ao Sol, para quando forem arrancadas, com todos os machados do mundo, urrarem velozes, perversas, ardendo corpo inteiro, doendo infinito de masoquismo impossível - pipas ao vento, engolindo e arrotando raios, transformando céu e terra, estendendo suas raízes brilhantes pelas nuvens até viver de novo em paz, paz nefelibata; mas eis que acaba a tempestade (ai! como amo os delírios sem gravidade, em que as coisas saem voando de pernas pro ar, o vestido das bailarinas levanta, as árvores, os postes, tudo iô-iôs gigantes de gás hélio cabriolando como longos cabelos da Terra num grande aquário maravilhoso de reflexos e espelhos) eis que findam as asas deste objeto voador não-identificado, pires voador, em que os Deuses londrinos tomavam seu chá das cinco enquanto nos jogavam xadrez com as vidas; outro dia descobri que minha cidade está coberta por ladrilhos de pedra portuguesa, pretos e brancos, em que posso tocar piano, imaginar partidas gordas de xadrez - que são os pedestres senão peões avançando as casas como ninfomaníacos, atrás da próxima peça que irão comer; mas eis que finda de escorrer a tinta-sangue do sacrifício humano-animal-cristal-nave de papel-jornal, e a máquina de escrever metralhadora começa a gemer sob o peso das palavras escorregadias...
O sentido da escrita arrasta o mar em pura calmaria até o porto, fim da viagem, e não é à toa que os marujos saem ébrios de continente a trocar pernas no solo instável de sua terra natal.
Estamos muito habituados a tomar ônibus, a ver amanhecer e entardecer longamente, a palavrear futilidades em constante (bom-dia como-vai?). Quão abissal nos soa, nós que jazemos num mundo de superfície fácil e cambaleante, aquela nota só arrombando as vestes do comum. Ser de uma velocidade só, que nos atropela e fere os ouvidos com suas rodas de aço esfolando nosso marasmo modorrento, e que craveja sua seta de movimento aos poucos.
Se nos seduz, é porque temos dentro um demônio perverso, verdadeiro ser ímpio amante da destruição das paredes e das vidraças, que sobe aos ombros entrando pelo rabo, e ainda nos convence a largar estas âncoras bonitas de plástico cromado, compradas aos lotes em seis vezes de promoção.
Uma velocidade só, a da horda, a da matilha, e se nos agarramos ao furacão, é porque suicida.
O jazz mais livre sorri este efeito de embriaguez permanente, e não apetece ao dia-a-dia. Só de virar baldes de tinta na tela, em constituir um sítio arqueológico portátil, ao levar ao olho do tornado (o eu da língua dos londrinos) vemos o mesmo mundo em outros olhos. Minha casa passa voando circulando ao meu redor, já chamaram isso de morte (quando a vida goteja inteira desde os princípios diante dos olhos) mas há um fim para tudo.
Peter Greenaway não é um gênio metafísico - no máximo gênio maligno, Djinn; arauto safado de uma prostituição das mães.
Hahaha! Da risada dos que se deixam embebedar pelas putas, sabendo que elas lhes comerão as tripas como sereias. Ulisses, aquele não-Pessoa, ningúem furou meu olho, deixou-se enfiar num furacão de cantorias assassinas - foi arrancado de lá, não sei como não saiu louco, ele que não existe, virou um monstro a passar-se de ovelha com sua figura ilícita.

8 comentários:

  1. fr.wikipedia.org/wiki/Liste_de_personnes_suicid%C3%A9es

    www.tulselupernetwork.com/basis.html

    saí de lá tremendo tanto , passando mal , não foi bom.

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  2. medir arte pela inspiração que provoque

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  3. fico em dúvida se as pessoas sabem o que 'ovni' significa, e em inglês.

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  4. tenho a impressão de que o texto acelera
    de que ele passa pelas tais três fases
    isso aí é como os sonhos me funcionam

    o texto que descrevo no início é o 'texto' de Greenaway

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  5. Esqueci de comentar xD

    Eu estava interessado nesse evento, algo bem inovador e cru ainda. Sua postagem só me deu vontade de ir, vomitar com você, revirar minhas entranhas e acabar com um grande ponto de interrogação no fim.

    Coisas assim me chamam atenção.

    Seu texto é vomitado com a sua ansiedade e irritação do momento. É um aspecto bom porque é direto, mas pode ser confuso em outro instante.

    :*

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  6. [...] me vem que Verdeacaminho nasceu assim, furioso, maremoto - cabeça d'água irrompendo numa represa...

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