domingo, 28 de outubro de 2007

Morte

Jamais voltarei. Jamais. Por Heráclito, eu morri! Eu morri!
Se em todos os outros encontros que tive sofri, neste, acima de qualquer um, rasguei-me a ponto de tornar-me irreconhecível. Se tento descrevê-lo é somente para homenageá-lo. Dali então minha sina era, sempre que esbarrasse nalgum sorriso comparável, reduzir-me a exclamar, brandindo um guarda-chuva fechado: «Zut, zut, zut, zut!*» e nada além. Minha morte foi tão prazerosa, ah se foi! Alguns dizem que homem nenhum deseja a morte, discordo. Explico. Anseio a morte acima de todas as maravilhas do mundo. Desde aquele encontro terrível vagueio insatisfeito com meus eus vulgares, sou eterno visionário, insaciável ante o novo. Suicido sempre que posso, sempre que é dada a oportunidade. Mas nenhuma morte ressuscitou-me tão brutal quanto aquela. Aqui faço um parêntese. Minha morte almejada é a do espírito. Não que não me ame como sou, não, Ha! Comparado com os outros que rastejam por aí, sinto-me nas nuvens, sinto-me próprias nuvens. Mas como nuvens enxergo estrelas acima, não sossego enquanto não derrubá-las, alçar-me às suas profundezas mais inalcançáveis. Se me fosse então imposto deixar a carne, dissipar-me de todo, deixando para trás apenas as poucas jóias que já confeccionei, prantearia longamente. Feita aqui a distinção, alongo-me pela morte da alma. Sim. Naquela tarde impossível foi-me aberta uma porta, uma porta que muitos já me haviam descrito, da qual já havia lido extensos louvores, mas acreditava-a fruto da imaginação dos ébrios.
Ébrio então. Como diriam alguns, estar sempre ébrio é o único problema. Arrojei-me na grama, estirei-me, estiquei braços e pernas, ressonei, dormi eras, acordei de imediato, espiei o arredor, meus companheiros de jornada ali estavam, todos em seus lugares, todos alhures, ah sim. Caímos então, jogamo-nos do cinza fácil, atiramo-nos direto no centro das chamas, sem escrúpulos, sem pesar, queimamos, ardemos, choramos, rimos, Ha! Como foi boa aquela morte da alma, já não se percebia aonde se estava, mesmo sabendo-o; o coração gritava ‘vida!’ a cada fôlego. E corria, corria como vento, corria como vento na grama, rodeava as árvores, subia, descia, atrapalhava os cabelos soltos das francesas, cabriolava, saltava, dava cambalhotas, mais rápido do que a luz, do que o pensamento, invisível, indetectável, jamais sonhado! Sentia-se naquele momento a própria presença dos espectros do além a chamar, a convidar, e, inferno, aceitando aquele convite garanti-me perdido, perdido com gosto, talvez para nunca-mais, nos labirintos do pensamento. Sim, porque eram irresistíveis os prazeres que nos eram oferecidos. Não sei quanto aos dois outros parvos que me acompanhavam então, não posso dizer pelos seus nomes estas palavras que reclamo ao meu. Aquiesci, feliz, sabendo da longa queda que aguardava.
Se quero saber fatos concretos, se quero uma descrição do cenário, da brisa úmida, do vestuário falso, da luz no ambiente, embebida em nublagens, do pesadelo encantado que nos abraçava, da relva verde, tão verde! a agarrar nos nossos pés, das filosofias que ali criamos, do amor que experimentamos por todas as coisas do mundo, e de fora dele, das lentes novas que se abriam aos nossos olhos, do redescobrir dos mais simples objetos, da comunhão, da arte, da essência do universo que nos foi apresentada? Para que quereria eu sabê-lo? Guardo na memória o simples despertar das novas cores do mundo, dos feitiços que só se vê pelo canto dos olhos, e desde então erro pelos caminhos do convívio, a estudar os outros tantos como eu, a testá-los, a encontrá-los e prová-los, a tentar matá-los todos para que no fim só reste a mim, morto, vivo, em todos eles, em mim mesmo; também refletido numa jóia nova, na rocha, em pequenos ídolos de barro, estatuetas, monumentos, memórias e tradições, histórias, leis do cosmo, eternidade.
Aí sim sou sereno.

*em francês: « Uau! »



“Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta na Muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender”.
As Portas da Percepção
Aldous Huxley

sábado, 27 de outubro de 2007

Cárcere

Ao topo da velha montanha eu subi, lá que minha vida inteira manifestou; eu ainda estou preso à velha montanha, ainda fico pensando-a à noite, quando já não podem me ver fugir, quando já me estou sozinho com ela, eu subo a montanha aos passos calmos e aguardo. A montanha é meu lar, meu fardo. Quando desci à primeira vez, gritei-lhe um desejo: desejei eu que a visse, desejei que conhecesse sua forma corpórea, desejei que pudesse amar-lhe e não deixá-la já bem longe. Queria eu encontrá-la aqui pequena, aqui colina, aqui morro, aqui banco de areia, aqui torrão de terra, aqui no meu jardim. Mas depois de pedir-lhe tanto eu a deixei correndo, fugindo chorando, acreditando-me liberto, já saudoso do cárcere. Nisso que o tempo me foi tirado e lá fiquei, perpetuamente, servo arredio, simples acréscimo caprichoso em sua potência infinda, leve detalhe no gigantesco corpo de rocha. Ah sim, podes dizer, minha carne de lá saiu contente, considerando-se rápida e traiçoeira – minha carne é feita de roubo e mentira – com suas pernas tortas rodando ligeiro para a distância. Ah sim, podes dizer, sabia ela que não poderia ser contida em sua empreitada, sabia que se furtaria de volta ao tempo quando bem entendesse. Ah sim, ela fugiu, minha casca fugiu aos confins da régua-memória - mas esqueceu o principal: ainda estou lá! Sonhando o sonho da montanha, pensamentos lentos do monumental, simples natureza morta a lembrar os dias de correria como longínquos, como passado. Ah, meu amigo, eu sei o que vais pensar, eu sei que pareço louco aos tão comuns, mas fui tomado de sortilégio ancestral, a magia do imenso, e sou tão pequeno, minúsculo até, meu amigo, estou preso. Se algum dia fiz-te bem, se algum dia acreditaste confiar em mim, ah, eu te peço, se pelo menos imaginas que meu retorno te será proveitoso, que minha dívida te será de algum modo útil, por favor, eu imploro! Encontra-me a montanha, satisfaze meu desejo, satisfaze o desafio que lancei às forças ancestrais, sim, acha a maldita, acha-a aqui entre nós, disfarçada, traze-me ela e mata-a! Na minha frente! Rindo de prazer! Quero o seu sangue correndo ao meu redor, quero banhar-me nele, rir da vitória efêmera, rir da vida fútil...!
Como? Se desse modo poderei tornar à mortalidade? Mas se não será precisamente o contrário! Tolo! Rirei de ti também, reles pedaço de carne, Ha! És tão ingênuo... Acha-me ela. Quero desfrutar alguns segundos de grandeza antes de minha maldição volver à mente, antes de perceber minhas algemas inimaginavelmente poderosas. Nada pode deter a montanha, meu caro, somos meros grãos de pó, juntos seremos torrões de terra e nada mais. Quão longe está a eternidade da rocha da efemeridade da carne! E minha carne é feita de roubo e mentira, minha carne me trai e foge, me deixa preso à Imensa, à Única. Não, não, não. Já não posso mais viver como tu vives. O máximo que consigo é contemplar-te, escrever-te belos versos e contar-te minha história. Sou-te superior, no mais. Algum dia talvez atinjas minha glória de vassalo, meu naufrágio.
Vai! O tempo te urge! Volta depressa, e talvez sejas recompensado com alguns mínimos átomos, desses vazios, de notas de pé de página...
Vejam só, ele realmente foi! Ah, que diria a montanha sobre isso, com sua voz de uivo, seu vento amigo a roçar-lhe as faces de granito, que diria a Terrível. Consegui capturar mais um na minha sina, vejam só. Mais alguns e construirei um pequeno banco de areia, talvez não mais do que o suficiente para naufragar alguns outros e aí...! Ha!

Armadilha

Fui-me um dia ao parque em busca de inspiração. Tarde quente de verão e eu terminara meus afazeres, desejava momentos de repouso e poesia fácil. Abri-me um mapa e guiei-me pelo instinto, rodei-me de olhos fechados até tonto, escolhi o caminho. Quando não estamos em casa, qualquer lugar é bom por igual: o gosto do novo é sempre esplêndido à mesma medida, em todos os locais e paisagens; qualquer visão do desconhecido aquece a alma de euforia transitória – ela só quer a novidade, só quer irritar o Hábito. Quando não se tem planos deve-se inventá-los, deve-se rodar cego e seguir a estrada que os pés escolherem, nenhuma outra seria mais proveitosa. Fiel à minha sabedoria mundana, atingi assim o melhor parque de todos naquela cidade tão nova. Árvores, sombra, belas pessoas e agradáveis arredores. Sentei-me, ri comigo, tão velhaco, encontrara o melhor parque de todos, encontrara a melhor grama e as melhores árvores, meus bons pés, tão sábios, levaram-me àqui, alhures estaria vindo àqui em sonhos, alhures não seria tão feliz, tão tranqüilo.
Felicitava-me ingênuo, inofensivo, abri os olhos, cansado do brincar cego, do guiar-me pelas extremidades, que surpresa! Um espetáculo! E foi aí que meu plano inteiro seguiu por água abaixo e dei-me conta do erro, dei-me conta do que era tal encontro terrível com os faunos, dei-me conta de Quem me era dado conhecer ali, naquele instante. Pois estava eu satisfeito com minha vida apagada, e ria a esmo. Maldição então aquela de encontrar justo ali, no melhor parque da cidade, alguns terríveis servos da Inefável, a honrar-lhe e louvar-lhe. Mas vamos ao episódio.
Abri olhos e ouvidos ao ambiente e de imediato identifiquei logo à frente, a poucos passos de meu refúgio, o caos sendo orquestrado. Meia dúzia de fanáticos despiam-se da secularidade, desembainhavam instrumentos muitos e deles extraíam odes à sua Amada. Eram claramente servos antigos, já acostumados ao fardo: acreditavam-no dádiva celeste e divertiam-se com seu labor ingrato. Disputavam uns com os outros as atenções de pequenas manifestações da Perfeita, sua diminuta platéia de amantes, que rondava e aplaudia. Descrita a visão, passo às suas catastróficas conseqüências sobre minha paz.
De início congratulei-me e admirei, nada além. Mas conforme se deu seguimento ao culto fui compreendendo seu objetivo, vislumbrando a deusa pela qual suas vidas eles sacrificavam. E sobressaltei-me, e revirei-me, e olhei em volta para ver se não estava sonhando, o que descobri ser verdade – era um intruso nos próprios sonhos – e então em minha alma gritei e pedi socorro enquanto perdia-me nos labirintos de ilusão. Ah, como fui desprevenido! Contemplei para sempre a execução das obras apócrifas; jamais desviei o olhar. Qual lobo, colhido pela armadilha; qual amante, preso pelo pé ao túmulo da amada; qual sábio, aprisionado numa sombra de ave, talvez para nunca-mais; fiquei ali, inundado por revolta e ambição. Morri naquele momento, e hoje sou algo intermediário entre o ingênuo feliz que já fui e os faunos servis que aqui maldigo.
Por isso clamo: tenham cuidado, tenham muito cuidado, pois quando se sai à porta e se deixa os pés guiarem a jornada, nunca se sabe aonde se poderá chegar. Nosso corpo é traiçoeiro e vive a conduzir para ciladas – pudera, é pela carne que Ela se manifesta. Cabe à mente arguta decifrar suas artimanhas e guardar-se do tamanho mal que nos espera a todos. Com sorte, a carne morre sem jamais conhecer esse lado sombrio da existência, é enterrada incólume e volta à insignificância afortunada dos esquecidos.



"Imagina. Ah, eu sou um mero aprendiz. Eu estou tentando escrever, vocês estão tentando tocar. Não é a mesma coisa? Italianos. Eu peço um violino e ele tira. Vou pedir uma música. Afina esse diabo logo meu filho. A ansiedade está me matando. Viro-me, tornar mais óbvio o foco da minha atenção. Se bem que as duas ali, até agora alemãs, violinista e cellista, belo espetáculo. Por favor, desembainhem seus instrumentos. Não dá pra morar longe disso não. Meus sonhos se passam aqui, estou intruso no pensamento. - 'Ele passa, um ar sombrio, perdido em pensamentos. Não se divisa reação no seu rosto ao cruzar com os músicos de rua. É um momento solto de poesia no meio da vida cansada. Todos os outros se repetiram demais e foram esquecidos.' - Aproximo-me: intento desvendar seus sentimentos. Zombam-se e disputam, como crianças. Erram e aceitam. É tudo improviso, não há regras. Como eu posso florear esse momento? Dá para sonhar dentro de um sonho? Só o que me ocorre é interferir. O de laranja, óculos John Lennon, sou eu.
Sou teimoso, e fico aqui horas se for necessário."

texto de Munique, parque.


terça-feira, 2 de outubro de 2007

Convite

Papel,
Flutuas em correntes de naufrágio, eternas tormentas de mutação.
Persigo-te como quem sonha o acordar, aderno-te sem escrúpulos:
Sou suicida ao querer cortar-te os pulsos.
Meu corpo é o teu, e ainda foges de mim, infeliz,
Desfazes-me em tiras, mas só para melhor envolver-te:
Espalho-me pelo teu rio de navios mortos.
Quando menos esperares, estarei lá,
Invisível nas fisionomias dos teus "poetas" prediletos.
Sim, grande farsante,
Infligiste-me tamanho desespero que agora já nem sofro:
Cambaleio,
Por entre teus mares de tinta,
Trajando máscaras cinzentas de ordinário.
Querido carrasco de prazeres,
Aflijo-me com tua distância:
Como serias bem-vindo em meus lábios,
A provar-te a carne danosa,
Trocar-te as glórias de papel?
Velho inimigo,
Aguardo o dia de meu triunfo, nossa morte,
Pois enquanto me multiplico, multicor,
Teus segundos se esvaem, e repito:
És fruto do meu querer, és filho do meu pensar, és meu, meu, maldito, que não fujas, és meu, meu amado barquinho de Caronte,
Sem ti, que sou?
Nem morro, dissipo.
Impede tamanho suplício! Depressa!
Abraça-me no leito rochoso onde arranhas tua âncora!
Socorre-me destas lonjuras do comum,
Arranca-me deste oceano sempr’igual;
Comer-te-ei sem remorso,
Sorrirei ímpar.



Chama-me do que quiseres,
Fim, Amor, Musa, Paz,
Sou todos! Graças a ti!