sábado, 27 de outubro de 2007

Cárcere

Ao topo da velha montanha eu subi, lá que minha vida inteira manifestou; eu ainda estou preso à velha montanha, ainda fico pensando-a à noite, quando já não podem me ver fugir, quando já me estou sozinho com ela, eu subo a montanha aos passos calmos e aguardo. A montanha é meu lar, meu fardo. Quando desci à primeira vez, gritei-lhe um desejo: desejei eu que a visse, desejei que conhecesse sua forma corpórea, desejei que pudesse amar-lhe e não deixá-la já bem longe. Queria eu encontrá-la aqui pequena, aqui colina, aqui morro, aqui banco de areia, aqui torrão de terra, aqui no meu jardim. Mas depois de pedir-lhe tanto eu a deixei correndo, fugindo chorando, acreditando-me liberto, já saudoso do cárcere. Nisso que o tempo me foi tirado e lá fiquei, perpetuamente, servo arredio, simples acréscimo caprichoso em sua potência infinda, leve detalhe no gigantesco corpo de rocha. Ah sim, podes dizer, minha carne de lá saiu contente, considerando-se rápida e traiçoeira – minha carne é feita de roubo e mentira – com suas pernas tortas rodando ligeiro para a distância. Ah sim, podes dizer, sabia ela que não poderia ser contida em sua empreitada, sabia que se furtaria de volta ao tempo quando bem entendesse. Ah sim, ela fugiu, minha casca fugiu aos confins da régua-memória - mas esqueceu o principal: ainda estou lá! Sonhando o sonho da montanha, pensamentos lentos do monumental, simples natureza morta a lembrar os dias de correria como longínquos, como passado. Ah, meu amigo, eu sei o que vais pensar, eu sei que pareço louco aos tão comuns, mas fui tomado de sortilégio ancestral, a magia do imenso, e sou tão pequeno, minúsculo até, meu amigo, estou preso. Se algum dia fiz-te bem, se algum dia acreditaste confiar em mim, ah, eu te peço, se pelo menos imaginas que meu retorno te será proveitoso, que minha dívida te será de algum modo útil, por favor, eu imploro! Encontra-me a montanha, satisfaze meu desejo, satisfaze o desafio que lancei às forças ancestrais, sim, acha a maldita, acha-a aqui entre nós, disfarçada, traze-me ela e mata-a! Na minha frente! Rindo de prazer! Quero o seu sangue correndo ao meu redor, quero banhar-me nele, rir da vitória efêmera, rir da vida fútil...!
Como? Se desse modo poderei tornar à mortalidade? Mas se não será precisamente o contrário! Tolo! Rirei de ti também, reles pedaço de carne, Ha! És tão ingênuo... Acha-me ela. Quero desfrutar alguns segundos de grandeza antes de minha maldição volver à mente, antes de perceber minhas algemas inimaginavelmente poderosas. Nada pode deter a montanha, meu caro, somos meros grãos de pó, juntos seremos torrões de terra e nada mais. Quão longe está a eternidade da rocha da efemeridade da carne! E minha carne é feita de roubo e mentira, minha carne me trai e foge, me deixa preso à Imensa, à Única. Não, não, não. Já não posso mais viver como tu vives. O máximo que consigo é contemplar-te, escrever-te belos versos e contar-te minha história. Sou-te superior, no mais. Algum dia talvez atinjas minha glória de vassalo, meu naufrágio.
Vai! O tempo te urge! Volta depressa, e talvez sejas recompensado com alguns mínimos átomos, desses vazios, de notas de pé de página...
Vejam só, ele realmente foi! Ah, que diria a montanha sobre isso, com sua voz de uivo, seu vento amigo a roçar-lhe as faces de granito, que diria a Terrível. Consegui capturar mais um na minha sina, vejam só. Mais alguns e construirei um pequeno banco de areia, talvez não mais do que o suficiente para naufragar alguns outros e aí...! Ha!

Um comentário:

  1. Rico de sentimentos, belo texto! Mas na minha tolice de economista, me perdi um pouco. Adorei os átomos de notas de pé de página!

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