sábado, 27 de outubro de 2007

Armadilha

Fui-me um dia ao parque em busca de inspiração. Tarde quente de verão e eu terminara meus afazeres, desejava momentos de repouso e poesia fácil. Abri-me um mapa e guiei-me pelo instinto, rodei-me de olhos fechados até tonto, escolhi o caminho. Quando não estamos em casa, qualquer lugar é bom por igual: o gosto do novo é sempre esplêndido à mesma medida, em todos os locais e paisagens; qualquer visão do desconhecido aquece a alma de euforia transitória – ela só quer a novidade, só quer irritar o Hábito. Quando não se tem planos deve-se inventá-los, deve-se rodar cego e seguir a estrada que os pés escolherem, nenhuma outra seria mais proveitosa. Fiel à minha sabedoria mundana, atingi assim o melhor parque de todos naquela cidade tão nova. Árvores, sombra, belas pessoas e agradáveis arredores. Sentei-me, ri comigo, tão velhaco, encontrara o melhor parque de todos, encontrara a melhor grama e as melhores árvores, meus bons pés, tão sábios, levaram-me àqui, alhures estaria vindo àqui em sonhos, alhures não seria tão feliz, tão tranqüilo.
Felicitava-me ingênuo, inofensivo, abri os olhos, cansado do brincar cego, do guiar-me pelas extremidades, que surpresa! Um espetáculo! E foi aí que meu plano inteiro seguiu por água abaixo e dei-me conta do erro, dei-me conta do que era tal encontro terrível com os faunos, dei-me conta de Quem me era dado conhecer ali, naquele instante. Pois estava eu satisfeito com minha vida apagada, e ria a esmo. Maldição então aquela de encontrar justo ali, no melhor parque da cidade, alguns terríveis servos da Inefável, a honrar-lhe e louvar-lhe. Mas vamos ao episódio.
Abri olhos e ouvidos ao ambiente e de imediato identifiquei logo à frente, a poucos passos de meu refúgio, o caos sendo orquestrado. Meia dúzia de fanáticos despiam-se da secularidade, desembainhavam instrumentos muitos e deles extraíam odes à sua Amada. Eram claramente servos antigos, já acostumados ao fardo: acreditavam-no dádiva celeste e divertiam-se com seu labor ingrato. Disputavam uns com os outros as atenções de pequenas manifestações da Perfeita, sua diminuta platéia de amantes, que rondava e aplaudia. Descrita a visão, passo às suas catastróficas conseqüências sobre minha paz.
De início congratulei-me e admirei, nada além. Mas conforme se deu seguimento ao culto fui compreendendo seu objetivo, vislumbrando a deusa pela qual suas vidas eles sacrificavam. E sobressaltei-me, e revirei-me, e olhei em volta para ver se não estava sonhando, o que descobri ser verdade – era um intruso nos próprios sonhos – e então em minha alma gritei e pedi socorro enquanto perdia-me nos labirintos de ilusão. Ah, como fui desprevenido! Contemplei para sempre a execução das obras apócrifas; jamais desviei o olhar. Qual lobo, colhido pela armadilha; qual amante, preso pelo pé ao túmulo da amada; qual sábio, aprisionado numa sombra de ave, talvez para nunca-mais; fiquei ali, inundado por revolta e ambição. Morri naquele momento, e hoje sou algo intermediário entre o ingênuo feliz que já fui e os faunos servis que aqui maldigo.
Por isso clamo: tenham cuidado, tenham muito cuidado, pois quando se sai à porta e se deixa os pés guiarem a jornada, nunca se sabe aonde se poderá chegar. Nosso corpo é traiçoeiro e vive a conduzir para ciladas – pudera, é pela carne que Ela se manifesta. Cabe à mente arguta decifrar suas artimanhas e guardar-se do tamanho mal que nos espera a todos. Com sorte, a carne morre sem jamais conhecer esse lado sombrio da existência, é enterrada incólume e volta à insignificância afortunada dos esquecidos.



"Imagina. Ah, eu sou um mero aprendiz. Eu estou tentando escrever, vocês estão tentando tocar. Não é a mesma coisa? Italianos. Eu peço um violino e ele tira. Vou pedir uma música. Afina esse diabo logo meu filho. A ansiedade está me matando. Viro-me, tornar mais óbvio o foco da minha atenção. Se bem que as duas ali, até agora alemãs, violinista e cellista, belo espetáculo. Por favor, desembainhem seus instrumentos. Não dá pra morar longe disso não. Meus sonhos se passam aqui, estou intruso no pensamento. - 'Ele passa, um ar sombrio, perdido em pensamentos. Não se divisa reação no seu rosto ao cruzar com os músicos de rua. É um momento solto de poesia no meio da vida cansada. Todos os outros se repetiram demais e foram esquecidos.' - Aproximo-me: intento desvendar seus sentimentos. Zombam-se e disputam, como crianças. Erram e aceitam. É tudo improviso, não há regras. Como eu posso florear esse momento? Dá para sonhar dentro de um sonho? Só o que me ocorre é interferir. O de laranja, óculos John Lennon, sou eu.
Sou teimoso, e fico aqui horas se for necessário."

texto de Munique, parque.


4 comentários:

  1. 'qual sábio, aprisionado numa sombra de ave, talvez para nunca-mais', 'Dá para sonhar dentro de um sonho?'

    você gosta de poe, chuto (:

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  2. que tortura postarem anônimos!

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  3. what's in a name etc
    é que não nos conhecemos, aí comentar com o meu nome não faria diferença

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  4. enfim,
    claro poe!
    e baudelaire tb, volta e meia aparece um petit poème en prose por aqui

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