sexta-feira, 30 de novembro de 2007

ViajarajaiV

Viajar.
Viajar contém em si um perfume já sorrindo, abre os cabelos em leque ao vento novo - vento frio e azul de nascer-sol. Quando se viaja tudo é-se semente e também partilha em magia: desrevela-se em espasmos a rejuvenescer, gritos, revitória ao sempre. Ah, como é bom viajar!
Viajar devia ser palíndromo: viajar é ida volta. Que na ida somos um e na volta dessomos de novo, desesquecemos caminhando pulos aos sabores da infância deixada atrás. Viajar é ir não voltar mais, e voltar. Glória efêmera em desconhecido, infinita em noite, engolindo e bordando todas as outras! Felizes os pássaros que viajam o ano longe, queria eu ser também músico e vaguear no porvir! Ou queria eu música - descrevo:
Na ida erupção, arranca sentidos e transborda: se em nuvem ou tempestade, paira indecisa. Rio-me só de lembrar: matar-se em prazer sem horizonte, levitar em planos possíveis, prováveis. Que gosto não teria viajar às estrelas?
Enquanto a volta é sua gêmea, rouba-lhe gratidão e fica-se em desgaste - que cansa fugir! O relógio persegue de vassoura na mão, arrebatar encantos da eternidade. A volta é milagre sobre-viver, tragédia da superioridade aos que não foram. A chegada é desfim, o repouso outra aventura.
E antes de viajar, há dobrar a perfeição: plantar mapas na cidade alheia e desdobrá-los, emendar sonhos nas florestas, colorir as pedras de lembrança. Tão espelho ela seria que ao inverso seria-se sem dívidas, enorme vulcão de cor! Pois quem já não sabia muito mais querida a idéia que o ser, e imaginar é cantar destinos. Talvez tropeços em lampejos da realidade na jornada escura, mas, cego ao branco-preto, só se vê o mundo em cheiros de capim nascendo.
Eis aí ao que só resta fim: rir e voar! Para casa, para inverno, calor só aquece em pequenos goles. Quando será a próxima? Não sabe. Mas já se descortina-a ali atrás do palco, desde então recitando a si mesma os futuros versos prediletos, minhas canções favoritas!

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

I (rascunho)

Cena I:

Digladiando as setas do relógio, fazia uma finta, ou cruzava-me os braços, esperava, atacava e esquivava. Mas perdia terreno, e corria - o relógio não conseguia ignorar: ou lutava sem esperanças, ou morria. E ele chovia em mim, e me estava encharcando; a água percorria até as veias azulando o dia, esvaindo como fios destrançados. Cada gota roçando meus cabelos soava um segundo a secar na clepsidra, deusa-mãe da pressa reinante. Os pés não se viam lado a lado há tempos: seu amor platônico ignorado enquanto cumpriam o papel sagrado de esticar e dobrar espaço e tempo - quando de repente gritaram em protesto: abraçaram-se na virada da esquina, derrubando-me, golpe de estado, atiraram-me de cabeça nos mares da derrota, enormes poças d'água de tempo perdido. Quase afoguei, levantei aborrecido, praguejei.
Aí sofro um convite.

Cruzo a rua tranqüila, cantarolando comigo mesma canção nenhuma, simples acompanhamento do tamborilar das gotas nas asas do guarda-chuva, a percussão imprevisível. Música de dia carregado, é música de quem guarda o sol escondido atrás da boca, ali debaixo da língua; ou de quem quase ouve seu sono em leito de nuvens, os roncos de trovões. De quando em quando balanço-me toda e deixo a água acordar rumorejando. Molhar um pouco assusta e faz viver; saio correndo então, leve feito sabonete escorregando pelas ruas lamacentas, soando forte em ambiente, dividindo o mundo em dois; até que ouço um Outro, um murmurante à quase inaudível por trás de sua capa de mau tempo, soçobrar numa virada de esquina, indo-se mergulhar na minha frente. Levanta-se, praguejando confuso, espalhando sons diversos em tons diversos em direções diversas, e no que sou invadida por intenso universo de distúrbio e explosão, e no que os segundos demoram-se a martelar nas nossas cabeças,
"Posso ir contigo?"

Do alto da janela miro a rua, a chuva fina incessante lavando ar como pára-brisa. Desenho solto e leve, sem pensar, cabeceando sono, dormito. Acordo em que um Outro desabando em poça d'água, quadro berrante de outro matiz, líquido disparando por todos os lados, um meteoro a espatifar oceanos. Suas roupas todas transfiguram-se de cor em tantos tons que ao levantar-se ele é puro arco-íris metamorfoseante. Seus olhos faíscam, seu peito queima, posso até ver-lhe as pragas que imagina a saltar pela boca. E nisso soma-se à cena a mais óbvia e inesperada figura, trajando longas capas amarelas de chuva, coroada dum enorme guarda-chuva negro, pilar de escuridão e calma, que irrompe no multicor descaso alheio para ocasionar o fim da tempestade.


Cena II:

Na praia, me aproximo devagar, pisando com cuidado as tantas dunas de areia branca-amarela-marrom, multifacetada em tons escuros claros, sombreadas aqui e ali de imprevisível, iluminação difusa do dia azul-cinza, dia de céu uniforme estático, céu plano-de-fundo, teto liso. E sigo esmagando as esculturas mais insensatas e criando escombros de todos os tamanhos, rodeio o horizonte com os olhos vastamente apertados, pausando eras a cada obstáculo da paisagem, avaliá-lo, criticá-lo, imaginá-lo em tantas diferentes posições, guardá-lo, tão familiar mas irreconhecível, até que capturo ao canto dos olhos um aceno, uma expressão, um rubor percorrendo as faces: ela, trajando tantas cores que já nem nomeio, sorrindo alva iluminando o ambiente. [tudo não seria cinza até ela surgir? pelo menos um pouco.. reescrever] Estaco, e, perdido no jogo de luzes, tateio uma página coberta de idéias e reflexos, e ponho-me a duelar com as cores [?] desembainhando canetas e lápis [ele deveria era fazer um aquarela], colorindo e esboçando sonhos, mundos.
Desenho.

As longas ondas estouram placidamente, longa e calmamente - infinitos continentes aportando e despedaçando, indo-se em vão, encabeçados de bolhinhas a estourar agudas, a arrastar areia em todas as direções, desviando dos banhistas, ondulando ao vento. [] E os passos, tantos, esmigalhando o solo de silêncio pé ante pé, envoltos num murmurar incessante de vento nas orelhas, um suspiro interminável, carregando em si tantos outros, ensurdecendo-me a muitos amigos, atrapalhando diálogos a vozes variadas, torcendo temas, universos encantados que se diziam ali para mim, o resmungar longínquo de companheiros atravessado pelo rima-rima do coração e do sangue pulsando, do marulhar da respiração. E um novo som desperta-me do transe, e percebo num espirrar tão característico meu acompanhante, viro-me ao seu encontro e grito-lhe. Ele ouve, e responde grato, sai-me a correr na minha direção.
Sorrio.

Mormaço, dia nublado, domingo, saía apressado pela areia ardendo quente nos pés, percorria a multidão, ensurdecido e confuso, cego pela massa e pela luz, fotofóbico, cruzava em passos rápidos já suando, recusando os ambulantes, desviando de tantos inúmeros passantes que mal notava, só o suficiente para classificar e esquecer, no meu mundo preto-e-branco de sombras feias e ruídos sem nexo, de claustrofobia, de tédio e irritação, me balançava aflito varrendo a paisagem sem dar atenção aos detalhes, só para somá-la à conta interminável de segundos perdidos. Fui até a beira-mar esfriar os pés, fui pego num estoirar de vaga e, assim, finalmente recordei doutro dia, doutra água, e me inflei de energia como pipa e saí carregado ao vento sem rumos, até de súbito notá-la a presença melodiosa e colorida, perfumada e única; esqueci pressas e calores, beijei-lhe nas sombras do guarda-sol, ou só imaginei, ou só desejei, mas ela me puxa a mão sorrindo sempre e cantarolando.
E repousamos.

sábado, 10 de novembro de 2007

II (rascunho)

Em chuva, escorria Nuvem.
Sozinho, malvestido, maltrapilho, fumante. Estava atrasado, e cada gota derrubada nos seus cabelos desviava um minuto do percurso. Relógio incessante. Fumava, cigarro atrás de cigarro. Dedos tamborilavam no casaco ansioso, maldizia o tempo.
Corria. Investido de fúria. Agarraria folhas voando. Redemoinhava ao sabor da tempestade. Era sujo, infeliz.
Numa esquina, tropeçava. O fim.

Observava um louco atravessar a rua e, intrigada, sorria-lhe.
“Quer vir comigo?”
Ofereceu-lhe espaço debaixo do guarda-chuva e ele, pingando lágrimas de outono, aceitou, com um aceno de cabeça.

Andaram. Ela sorria. Ele ainda escravo do tempo. Até que ela parou.

Em uma eternidade, os dois se beijaram. Ou foi ele que a beijou. Ou foi seu reflexo nas poças que o fez. O pensamento lhe cruzou a mente como relâmpago refletido nos olhos púrpuras dela. Que sorria, incessante. De qualquer forma, o tempo parou.

Já não chovia mais, jorrava sol nos becos sujos. Quem lhe dera saber quem era.
“A chuva acaba com todos nós.”
“Eu estou atrapalhando?”
“Você me faz companhia, eu lhe levo aonde quiser.”

Jamais entendeu o que se passou ali. Guardou aquele reflexo nos cofres mais ocultos da memória, para não abri-los de novo, não enquanto chovesse.
No dia seguinte amanheceu brilhando.




Nuvem era jovem, tinha seus anos levados a cabo de improviso, era desses insatisfeitos, que jamais haviam sentido aquele prazer tão simples de aquecer os pés na lareira e dormir ao sabor dos pingos lá fora. Era desses que inda descompreendia o ribombar repentino dos trovões no céu vazio. Mas não era de todo tolo: era também dos que são insatisfeitos, daqueles que já viram o belo e não o descobriram mais, dos que por mais que beba jamais satisfaz a sede. Dos que só beberia vinho.
Daquela feita, descobriu o sorriso do firmamento. Descobriu selá-lo carta com beijos escondidos sob as asas dum guarda-chuva. O suficiente para deixá-lo insone pelo resto da vida. Jamais voltou ele para casa, jamais conseguiu atender ao tal chamado do relógio.
Arrivou atrasado. Nada real havia ocorrido. Nada desculpava sua demora. Faltavam-lhe provas da glória que exibia. Não ligou para as punições, sofreu estóico. Sorria em eco. Os olhos, em outros tempos. Não importava que rasgassem sua carta.
Fora enfeitiçado. Sem saber como, mas fora. Não era chuva que bebia agora, havia assistido a um milagre. A partir daí, saberia a si em sonho.

Ela transbordava na paz roubada. Já não sorria, tossia longa e pausadamente. Mas satisfeita. Seus dentes rasgavam a carne macia de inocente. Era bruxa. Era dessas que não se encaixa em uma definição vaga, em um grupo a ser definido. Era um guarda-chuva, exposta ao vento e à água, ao sol e às vezes, a passantes encharcados.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Alegoria


Éramos todos cobertos de neve, ao rigoroso inverno
Saíamos a balançar guarda-chuvas fechados ao vento, gritávamos eco! eco! no topo das montanhas cinzas.
Pastávamos.
Eis um que mordido, se fugiu e escondeu.
Eis ovelha negra.
Saíamos a balançar guarda-chuvas fechados ao vento, subíamos à sombra mais alta,
Gritávamos para fim:
Eco...
O corvo negro, a zombar e morder,
Convidava mordendo, doendo.

Um dia desses, tomado de ânimo, tomado de flecha cravada no peito,
Dessas atiradas a cegas por ela maldita,
Ela ave - ovelha mordida;
Um dia desses saltei janela afora, jorrei sol,
Escrevi branco no céu azul.
Todos me seguiram - todos ecoando comigo;
Mas tantos abriram o guarda-chuva que levitei.
Meu algodão espalhou pelo céu e virei nuvem.

Hoje, quando abro olhos,
Fito o céu com raiva.
Tropeço-me em tantos ecos da nuvem que afoga luz,
Armo uma flecha no arco.
Que a nuvem branca virou montanha desbotada;
Que os guarda-chuvas abertos pros outros pra mim estão fechados e balançando;
Que tantos flutuantes naquele céu mais parecem escarpa dura,
Parede dura, infértil, morta.

Puxo meu arco e mordo, derrubo a nuvem, ovelha de guarda-chuva.
E que nós, aqui fugidos, escondidos,
Reneguemos as glórias pálidas de museu.
Hoje à noite comeremos a carne dos nublados,
E procriaremos aves de cor e de voz, aves da cor e da voz, corvos.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Plano de Amor

Por que toda vez que vejo uma mulher bonita ou charmosa
tenho vontade de falar eu te amo?


Meu projeto de paixão é este:
Alvejar a passante com uma tirada de chapéu,
Transmutá-la em ser sorridente, e fim.
Que toda a relação seja assim:
Deixa-a resumir-se a sorrir-me e viciar-me
Deixa-me cuidar de providenciar sua satisfação.