domingo, 2 de março de 2008

Dobras (rascunho)

Passeava convalescente em Londres, cidade-em-si, quando assisti às comemorações da independência de Kosovo, país-incógnita, comemorações não-planejadas, sem discursos nem populismos, simples folia da massa.
Contagiante. E por quê? Meus sentimentos se exaltaram ao notar a importância do fato para tantas almas felizes, e o ar foi preenchido de algo que não ordinário, algo de sublime, de literário. Algo externo à ordem comum do mundo, pois que aquele dia significava uma ponta de iceberg em tantos dias passados atrás para alcançá-lo; e também refletia uma glória de tantos dias vindouros, que estaria gravado nas memórias como marcante, seria lido nos livros de história e cantado a cada aniversário que fizesse.
Esse dia era uma dobra na linha do tempo, pois que esta segue retilínea enquanto nada acontece, segue preenchida de uma cor só monótona, até que de repente faz curva em uma nova dimensão, e esse momento da curva dá significado a todos os passados e será o ponto de partida para os futuros.
Tempo efêmero, mas que ao mesmo tempo eterno.

Perguntei: seria essa situação o arquétipo da fonte de inspiração?
(Partindo de que minha noção de obra de arte seria a que me inspirasse; e de inspiração a que me tragasse ao estado contemplativo, ou que me provocasse ímpetos de compartilhá-la, ou produzir outra obras.)

Notara muito dantes que a dor é literária, que as mortes e guerras servem aos livros e à arte. Ocorre-me que esta dor em sua maior parte é de rasgo, de deixar marcas na posteridade. Talvez poéticas sejam todas as curvas no tecido do tempo, todo o questionamento do tempo-espaço cotidianamente óbvios; ou mesmo todo o pensar fora de si, o pensar através do outro, o sair do corpo e da cosmovisão do dia-a-dia.
(Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia?)

Talvez por isso a noite inspire: esconde o mundo? É outro mundo, o mundo escuro, oposto ao óbvio iluminado.
E as drogas nos trariam inspiração pela alteração do espaço-tempo, pelo questionamento do eu ...

Porque o texto não literário, o que não inspira, que não é um mundo-em-si, o texto mais cru e frígido, desapaixonado, tomemos como o ensaio científico bruto, os dados de computador. (São os textos-reprodução-do-mundo, representação. Que descrevem pormenores como se por conceitos possuidores de existência própria, captáveis por qualquer leitor. Fingindo que poderiam descrever a música para o surdo. Fingindo que as palavras não funcionam somente através das catarses, das metáforas, do leitor reconstruindo um texto à parte.)
O que inspira então talvez seria a negação destes, a negação de Platão e das idéias imóveis, que elas possivelmente funcionariam se o mundo fosse estático, mas as correntes do tempo provam a pluralidade transformante da realidade, e por isso nos violentam a paz esclarecida, nos trazem escuridão e medo, pensamento.

Talvez por isso as plantas inspirem, serem seres a se mover no tempo noutros ritmos de difícil captação. Talvez por isso as nuvens inspirem, por não serem definíveis no espaço, sempre em movimento.
Guardas-chuva me inspiram por fingir volume, por quando abrir serem explosão; que as ilusões ao serem reveladas redefinem o mundo: o choque do desmentir é grito-orgasmo, rasgo.

Repensar o espaço-tempo não é que um tipo de pensar pelo/através de outrem, reinventar o mundo. Os óculos de Proust: não procurar outras paisagens mas outros olhos.

Talvez Deleuze esteja certo e o importante nessa história toda seja o devir, a transformação. Que só importa definir estados semi-estáticos de antes-depois para perceber as marés de mudança atuantes, a lógica ilógica artística do real.
(seria viajar um grande devir?)

Que nós, povo da aparência/essência, povo das crenças no uno; o que nos leva além de nós, e nos arrasta para alhures, é desfazer esta cosmovisão.
Isto nos faz sair dos paradigmas, conseqüentemente sair dos medos e felicidades da vida mundana, se lançar externo a si e ver-se por outros olhos.
Não diria ver o mundo em sua Verdade, sua coisa-em-si; diria ver o mundo de outra forma, e a divergência entre os dois nos levaria além?
- Nos nadificaria... será tudo isso aqui uma divagação existencialista?

E lá vamos nós, mais uma escala no mundo dos livros, atrás de outros filósofos a assimilar. Que inferno, pois só queria escrever aquis-e-alis, nada de ficar vangloriando os já-perpétuos.

Um comentário:

  1. espero depois reorganizar isso aí, porque nao desenvolvi quase ideia nenhuma e na pressa de falar tudo que vinha à mente escorreguei em filosofias velhas e falhei tanto no aspecto literário quanto no filosófico.

    espero depois catar minhas anotações sobre kosovo e rechear o texto todo.

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