sábado, 22 de março de 2008

Sobre o movimento

Para melhor compreender a bagunça e a vida, ou a bagunça-vida, que é a mesma coisa, vou criar aqui um pequeno glossário: meu dicionário, e quando me vierem com dúvidas sobre o que faço, simplesmente lhes mostrarei as definições. E eles saberão o que quero dizer, e avaliarão minha pertinência.

Estes quatro verbos, que são como fogo, terra, água e ar, são os quatro elementos da constituição da ação: não se referem às coisas fixas e ordenadas, mas ao seu movimento impensado.

Tudo começaria no esmar. Esmar seria a forma mais baixa do movimento aleatório. Vou defini-lo rápido e passageiro, pois que não interessa: esmar é o ponto de partida. Seria assim: o esmante é aquele que não possui objetivo, e navega a esmo pelas ruas, simplesmente porque não lhe resta o que fazer.

Não muito melhor do que isto é o avulsar: o avulsante é aquele que ainda tem opções do que fazer, todas com suas devidas importâncias nulas, e as escolhe sem reflexão: avulsa, permitindo às correntes do mundo tragarem-no em sua desordem multiforme. Não é ele mesmo inventor das marés, mas pelo menos nelas se deixa levar aos becos, como tonto.

Agora vamos ao vir-a-ser criativo, o que realmente importa:

Flanar é a magia francesa. Quando digo francesa, me refiro, obviamente, à França inventada dos flanantes, aquela feita de café e livros, de francesas e seu sotaque macio, de rios literários multicoloridos. As francesas inventaram o flanar: não é origem cronológica mas sim poética do verbo, que falar francês estimula a mente a sonhos. Sem mais esmices: flanar é trocar os pés, é abandonar todo e qualquer desejo mundano para aproveitar o gosto do novo, simples passeio. Flanar é ser livre, ser-em-liberdade, é contemplação estética do arredor, invenção de irrealidade. Talvez os loucos flanem - vou lhes perguntar da próxima vez que esbarrar em um nessas ruas-rios confusas da floresta-festa flanatória.

Enquanto elfar é o ápice da existência desregrada, é movimento dos elfos. Quando um homem se desfaz de seus objetivos e apanha o mundo com paixão, pelo simples respirar da paisagem, mas não se limita: engole-o ainda e vira ele mesmo cenário; quando sua existência remete a uma forma artística tão sublime que corrói as correntes de necessidade dos outros elementos, aí sim ele já se pode considerar elfo e não mais gente. Os homens-elfo são a raça da contemplação mais aguçada, que funde sujeito-objeto: e se os flanantes gostam de cantarolar ao longo das margens de um rio, é porque gostam de admirar as danças élficas do universo. Talvez os elfos para si mesmos apenas flanem: o elfismo é o reflexo deles no espelho - é quando o reflexo também ele flana, ecoando o ser-caótico com tanta imprevisão que ambos ressoam uma música de invenção, e tecem mundos.

Sendo assim, estão definidas todas as formas da transformação da matéria. Se lhes parece haver falta da locomoção ordenada e racional, percebam: se omiti-a por puro acaso, ela coincidentemente também inexiste. Toda a diferenciação em tempo e espaço nega os princípios de igualdade que supostamente regem o mundo, proclamando assim o reino da imprevisibilidade, o carnaval, a bagunça-vida! Não existe, pois, o movimento escravo do não-movimento, por este comandado: sempre que os átomos se põem a balançar em folia louca, esquecem suas ordens monótonas e divertem-se bêbedos.

4 comentários:

  1. uma idéia antiga...

    a definição de avulsar ficou péssima, enquanto a dos criativos não definiu nada.

    acho que ficou engraçado,
    a verdade é que vivo usando estes verbos na minha cabeça, a não ser tirando o esmar que é feio e inventei há poucas semanas.

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  2. Confesso que achei genial.

    O ritmo da narrativa, o fluxo de idéias que corre sem que percebamos e a dicotomia de falar sério não falando me lembrou tanto uma carta de Kafka, sobre tudo aquilo que é quase-necessário.

    Um dia eu te mostro.

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  3. genial é o adjetivo dos não-entendedores hehe!

    por isso a vida tende a ser genial também...

    linkar-te-ei, blz?

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  4. é óbvio então que o pensar racional então é das árvores (f)rígidas em seus canteiros; o fazer ignora quaisquer elocubrações teóricas em uma práxis instintiva

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