domingo, 11 de maio de 2008

Noite II

Noite lembra aquelas distopias fantasmagóricas, de sair nas ruas sem luz e tremer no escuro, ser abordado por vários duendes de sorrisos estáticos, perigosos como estranhos, seus rostos alongados de não-humanos, esgares que não se sabe se de dor ou de paixão, em sua risada perene inaudível, insuportável, que nos dói as bases mais ínfimas do pensamento, lembra aquelas mulheres em êxtase agitando os longos cabelos num frenesi sem mente, aquelas bruxas tão terríveis, animalizações exclusivas do não-animal, espasmos sem nexo ordenados por danças ritualísticas ao redor do fogo, danças infinitas, de serpente rodando em transe ébrio, ao redor das chamas queimando tanto, daquelas velas acesas que só servem a dar medo dos mais distantes, velas que acendem uma bolha de falsa segurança, frágil, tremendo ao vento que murmura, o vento que grita, lá distante, sem saber quem, vento desesperado que já não se sabe se não nos é o próprio eco chorando, eco dos nossos pesadelos, e que esbarra pelos ouvidos desatentos fazendo as cabeças girarem aflitas, para todos os lados, encontrá-lo, encarná-lo, defini-lo, denunciá-lo palpável e não mais fantasma de paranóia, pôr fim ao medo transcendental de sua possibilidade, de sua noite; esses gritos tristes e desesperançosos como os tantos sussurros pelas vastas névoas cinzentas, as reverberações de uma cidade abafada em um universo de nuvem morta, construção fria, morta, habitada pelos semi-conscientes perambulantes, suspiros e vultos, movimentos nas bordas do campo de visão, o quase-visível, quase-audível: porque Noite nos fecha os olhos ferindo com garras de aço só para chorar querendo abrir, chorar em desespero de querer abrir, e as pálpebras arranhadas, esperneando na cama insone, em pânico, afogando nos inúmeros lençóis de pano, lençóis de alma, vestes de funerário, querer abrir a janela e pular, abrir qualquer coisa e fugir, sair, virar-se folha seca redemoinhando sem mente, em transe, às marés dos espasmos de riso, como um animal único, abrir os olhos sangrando à força e apagar aquelas velas tão ofuscantes, tão calmas, vontade de afundar atrás das roupas, dos lençóis, das máscaras demoníacas, dos disfarces de negro, as camuflagens, as vozes aos berros de blefe, sorrisos de escárnio, congelados, se esconder daqueles assassinos, vampiros, os animais que não o eram, os estranhos que surgem, dos que são tantos, os de olhos abertos, os que vêem e não são vistos, os de negro, não são visíveis: porque acender uma vela não ilumina nada, não ajuda, não, é gritar por socorro sozinho na noite, um sussurro indistinto, quase um desafio, que ninguém atende, é pior, porque aí que vira vítima, vira presa, presa dos outros que não se ouve, dos que não se ouve nem no silêncio, eles encontram, eles aceitam o desafio, não se está mais escondido embaixo de tanto pano - é estar nu de novo: à noite se salta janela afora enrolado em pano para não ser engolido pela brisa fria nos pescoços, enrolado em pano para tapar bem os ouvidos e não gritar, e sai para andar no escuro, nos becos sem luz, rodando os cabelos como moinho de folhas, espreitando, espreitando,
tão chorando como os pelados,
tão sozinho como os pelados,
e vai lá e salta num súbito,
salta das trevas, em espasmo,
rasga todas as vestes vizinhas,
grita e mata
morde e mata
gritando e sorrindo
bebendo sangue e sorrindo
fumando e sorrindo
rasgando carne
rasgando vestes
rasgando pálpebras com garras de aço em sorriso estático,
o sorriso duende,
sorriso vampiro.

4 comentários:

  1. Obrigada pela visita...
    Adorei seus textos..diga-se de passagem!

    Sobre seu comentário..
    o "nunca saberei" não caberia ali..Já q eu tinha certeza q naquele momento "não amar" doeria menos!

    Beijoooos

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  2. para que não fiquem dúvidas: expandi aquele texto antigo ('Noite' de uns cinco meses atrás) mas não quis sobrepôr ao velho.

    talvez tenha perdido o ritmo? tentei que fizesse mais sentido...

    aliás tava notando como é engraçado que cada texto de uns tempos pra cá vem sendo totalmente diferente dos anteriores - tanto em forma quanto em conteúdo.

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  3. cara, o fato de vc fazer uma sucessão infinita de vírgulas sem nunca colocar um ponto final dá mais vontade de gritar e morrer do que as próprias palavras em si já dão. (isso é bom)

    não li o texto antigo e teria que ler de novo esse (antes de pegar muito ar hehe), mas pq vc comentou aí que queria que fizesse sentido? pq à primeira leitura eu imaginei o que vc escreveu como uma pintura de cenas mais ou menos desconexas mesmo, apesar de elas evocarem o mesmo sentimento. é isso?

    quanto ao que eu escrevi: tb achei que descuidei no final, mas é pq eu tenho preguiça de ficar trabalhando muito no texto, geralmente "cuspo" espontaneamente e publico mesmo que não consiga terminar hehe!

    escreva mais po!

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  4. Obrigada pela visita e pelo comentário.Fico imensamente satisfeita que tenha gostado do meu texto.
    Infelizmente, fechei meus trabalhos no blog.Meus sentimentos estão uma confusão sem fim, não tem como produzir textos de qualidade nesse estado de espítito.Porém, fiz um último texto e postei-o.Fique á vontade para lê-lo e criticá-lo.=D
    Vou visitar teu blog com mais freqüência, é muito bom!
    Abraços.
    www.cahguimaraes.blogspot.com

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